- Sonhei contigo, mas não lembro bem... sei que a gente se beijava e ficava junto para sempre.
- Hm... é estranho, eu sonho isso toda hora também. Na verdade não é estranho, é muito verossímil dentro desse universo surreal que construímos [que não se dilui nunca]. Já dizia meu pai: “Até uma barra de ferro, dentro de um copo d’água, se dilui”.
- Eu só te contei um sonho que eu tive: da próxima vez não conto não. Achei que ia te fazer um bem e ainda ouço que o meu sonho é previsível. O que é que eu deveria sonhar então?
O assunto ficou levemente suspenso, porque nem restava o que dizer de diferente, só esse tipo de diálogo improdutivo e sem futuro. Nada, aliás, tinha mais qualquer futuro.
Alguém andou escrevendo:
Ás vezes eu sinto luto
eu sinto nojo das gentes
eu vou vomitar meu presente
e nada mais expressaria tão bem o que Maria Luísa andava sentindo por esses dias: que coisa é essa de imaginar uma única felicidade possível, numa espécie de Pasárgada?
- Pensei em te dizer, sabe, que meu “paraíso” é o teu beijo, mas achei cafona, e muito desnecessário.
Para Maria Luísa, sim, muita coisa, ao longo da sua nem tão demorada existência, se tornara desnecessária. Até viver, em certas épocas. Preguiça de sair, de comer, de abrir os olhos. Hoje, contudo, algo aconteceu!
- Desnecessário? Nunca é, pode acreditar! Eu adoro! Afinal, o que é que tá acontecendo?
- Hoje tive uma epifania!!!
Pra começar, Maria Luísa adora essa palavra: algumas pessoas dizem que tiveram um click. Ela não. Sua primeira epifania foi tida com a repetição em voz alta de seu nome enésimas vezes, até que descobriu que pode existir uma certa graça em ter um nome duplo, de forma que, desde então: “Como é o teu nome?”, “Maria Luísa!”. E olha que isso nem foi há tanto tempo.
- O que é uma epifania?
- Hmmm, quer mesmo que eu explique,
- Que que te custa?
- Tá, assim ó, hoje eu decidi várias coisas que eu devo fazer, porque assim vou ser uma pessoa mais feliz.
- Então epifania tem a ver com felicidade? Por exemplo, eu sei, desde sempre, que se os meus números forem sorteados na mega sena eu vou ser feliz pra toda a minha vida. Simples assim?
Simples. Maria Luísa sempre soube de tudo: ela sabia, aliás, que todos os seus planos de viagens poderiam ser meras rotas de fuga. Nem era uma questão de não suportar a realidade, mas de questionar sua própria capacidade para alcançar o mundo de coisas com que um dia sonhou. Um dia já foi pura epifania o dar-se conta de que os sonhos são mutantes, de que alimentava sonhos já descabidos e de que o caminho de hoje, portanto, não valia mais a pena. E outra, mais outra, e outra epifania, todas vão chegando para anular todas as outras que as precedem.
- Até quando,
- Quê? Isso que eu disse é ou não é uma epifania?
- Não,
Até quando? Esse era o seu maior medo. Se Maria Luísa pudesse, bem que desejaria anular a seqüência de epifanias: queria estacionar em uma só, definitiva e permanente. Afinal, até quando durariam as suas resoluções? Até quando as coisas permaneceriam com o status de descoberta? Quando é que o novo assume as feições do velho? Quando que a metamorfose ambulante se transforma em inconstância?
- O quê?
-
Mas Maria Luísa o amava, e isso descobriu na próxima epifania que teve.
- Eu te amo,
- Maria Luísa, vai à merda.