Já ouvi por aí que a vida é muito louca, várias vezes. Mas isso dizem aqueles excessivamente normais, a quem isso que se chama vida [fortuna?] causa estranhamento. A nossa vida até que era pacata, porque não éramos normais.
Um dia, tudo vai de um jeito, temos, um ao outro, a nós: e isso basta. Dizias que eu enlouquecera, mas digo-te que tal bênção ainda na minha porta não bateu. Declarei-me, sim, culpado do teu infortúnio, bem o deves saber agora. Agora, mais louco ainda me deves enxergar. Mas morte é morte: morte tua, morte minha também. Afinal, diga-me, não achas que eu merecia esta tão funesta participação, contribuindo para a verossimilhança [e, por que não, coerência?] no grand finale da tua tragédia pessoal?
Fico pensando que, de algum lugar, agora me olhas e fazes aquele teu meio sorriso [que equivaleria, em uma pessoa efusiva, a uma sorriso com todos os dentes à mostra]... bobagem: mais uma vez, estou querendo co-protagonizar algo contigo, fantasiando o teu consentimento. Meus pensamentos, contudo, insistem mais um pouco: não, não fui eu quem, nos pulsos, atravessou-te a navalha, mas sinto que esse talvez fosse o meu dever, a minha permanente vontade, o meu desejo mais interior: vivi até hoje só para isso e, ainda assim, fracassei, não fui eu a te matar. Para salvar-me, e salvar minha possibilidade de existência nesse mundo [porque creio em dor moral], confessei a tua morte.
E era preciso continuar matando. Entrei no teu apartamento, todo fechado... Tudo era tão úmido ali: escuridão em mim! Era o ar, seria a minha respiração espessa? Era tão proibido e impróprio tudo isso... era o cheiro sufocantemente jasmim. Quem o convidou, por acaso, que entrasse? A perfumar dessa casa os espaços vazios? Talvez fosse aquele teu perfume do oriente, teu sangue conservado numa poça em temperos e pétalas brancas.
Sentei-me, enfim. Passaste, igual àqueles idos quinze anos, correndo a me chamar aos gritos [Vem, vem, vem], lembras? De preto, e tu sempre mais que eu, íamos deitar-nos, no quintal anormal que então tínhamos na fazenda, sobre mortos que jaziam sabe-se lá desde quando: até quando? Com flores coloridas eu te cobria, flores grandes, pequenas, naturais, de tecido, de plástico. Tu a dizer-me: “Morro e me enterras assim, de preto, mas só aceito flores naturais: quero que apodreçam comigo”. Ai, que medo, eu pensava... mas jamais poderias desconfiar! Arrependo-me só de não te ter afirmado que quem ia antes era eu, mesmo adivinhando, desde a primeira vez que te vi, que tudo seria exatamente assim. Conforto-me, no entanto: quem poderia contrariar-te? A quem não convencias com teu simples respirar? Além disso, não me deixes esquecer, fracassei...
A paisagem era tu no teu apartamento, em que na mesma tarde adentrei. Só restava, dissonante, o quadro aquele do verde úmido [lembras?] onde às vezes habitávamos. Sempre imaginávamos, enquanto o clima aqui na cidade era frio, inóspito, nublado, molhado [o mais lindo dos climas], nossa vida naquela tela, fugíamos para um outro tempo da História também. E até que tínhamos talento na arte de nos imaginar: deitada sobre o tapete púrpura, teus pezinhos mal chegavam ao seu final... no meu colo, dava-te uvas ácidas à boca, observando, certeiramente, teus cabelos cor de mel, cujos cachos caiam sobre teus seios, sem, contudo, ultrapassá-los. O sol em ti chegava a refletir, no teu traje branco de rendas, na tua pele alva, rosada pelo mesmo sol. Era a típica tarde que, assim inventávamos, vadia. Em tais circunstâncias, que outro nome dar-te-íamos, pois, que não Luísa? Esse nós que inventávamos, em outro século, em outro lugar, a mim era o mais fácil de suportar. Naquela tarde em teu apartamento, doeu-me nunca teres levado a sério a nossa mais bela criação juntos, porque sempre rias e nos ridicularizava: “Imagina, meu caro, eu jamais usaria todo esse branco nojento, jamais teria os cabelos dessa cor desprovida de personalidade, ainda que assim tivesse nascido...”.
Paradoxalmente, tenho minha vida e já não a tenho, vivo agora no mais completo estado de zumbi, também por total falta de coragem: bastaria mais uma lâmina. Hoje fui a um psiquiatra, sabes, que me disse o que tomei como verdade imediatamente: eu preciso disso tudo, da prisão, da cela, do desprezo de todos para aplacar esta culpa que exala do meu hálito, por isso não me mato também. Culpa de ter nascido e não te ter matado, porque essa sim era a nossa criação mais verossímil, a que mais a ti parecia bela. Como sempre, tu, mesmo morta, ditando o nosso verossímil. Invadi a nossa casa para poder pôr a prova essa sede de matar, e matei aquela Luísa do quadro da parede, o nosso retrato mais mentiroso de todos os que inventamos... Por que ainda querê-la numa parede que nem era minha? Por não ser tua... nem minha mais? Luísa não era eu. Não era tu. Não era a lâmina que pelos teus punhos entrou. Não era o teu pullover preto, teus cabelos pretos. Muito menos as flores que dentro de ti embalsamei. Mas agora o serviço está finalizado, ao menos a ela consegui matar.