terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Busquei a luz e o amor. Humana, atenta

Como quem busca a boca nos confins da sede.



(H. H.)


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Saí de recesso: fui recarregar minhas baterias nas águas das cachoeiras frias ^^

Até doismiledeeeezzzzz.

Beijo, fui.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Do sétimo andar

No alto de um prédio
voam lençóis molhados
de suor,
de um amor que se foi
em valsa previsivelmente
compassada.
Vou na dança
dos lençóis ao vento norte:
secamo-nos ao sol forte
de dezembro,
expulsamos mofos ancestrais
dos tecidos de tramas difíceis,
finas.

Da janela do meu quarto
[onde estou, imparcial]
observo lenta
o branco impessoal
dos passantes
que vejo
e volto-me aos tantos quintais suspensos
do centro da cidade
sem rumores de vocábulos,
qualquer verso imoral
que me tire daqui.
Miro-os: são balanços de elásticos ao vento.

Da janela
risco o vidro
risco e apago o vidro
desenho-me
[lá onde dançam os lençóis de tule]
risco com meu lápis carbono 0.2 feito de madeira reflorestada
[é preciso preservar]
risco, enfim, só pra poder apagar
e ir-me pondo por prazer de pôr-se
cinza, previsível, transparente
em parapeitos suspensos
[pulo? não pulo?]
onde quaisquer não
me vejam
[não me queiram ver].

Apago pra preservar
o vidro [pequeno]
a minha janela insignificante
[em meio a tantas outras jaulas urbanas]
os lençóis caleidoscopicamente
livres ao vento:
tonta, caio
quebro a ponta de carbono
risco o vidro que rasga
os meus punhos secos
os lençóis brancos
do sétimo andar
elastificando-se em sangue
cinza, podre, aguado
dentro de mim.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

é Natal

sorvo águas
de angústias
decaídas
de uma noite
natalina
sem as luzes
das estrelas
refletidas
nos vitrais
da esquina.

luzidas as
casas tristes,
sem enfeites,
à espera
de confortos
abraços
agrados
dos presentes ausentes
nesta noite natalina,
nesta lua cintilante:

naftalina especial
escura
- é Natal!

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

norte

o vento
forte e rude e seco
i n c o n s t a n t e
varre as minhas pétalas
já distantes:

palavra fugidia
silêncio alucinante
a poesia analgesicamente
dorme em mim.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Eu faço versos
como quem despetala
uma flor qualquer:
dissipo
perfumes alheios
a quem me der
motivo de arrepio frio.

Faço versos
como quem pede
o consolo da perda
o dízimo, o inconstante
o amor.

Faço versos
aos berros
jorrando entranhas
sonoras a céu aberto.
Finjo, leviana,
um orgasmo de puta
vadia.

Sussurro a beleza fugidia
dos botões das flores
recém-colhidas,
abortando-as
em golfadas
fugazes, vazias.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Há uma gota de sangue
espesso em minha garganta
amigdalítica.

Acho que nunca te mostrei
minha garganta, oposta
à nuca aberta
que vias nas noites nuas

[ou vias estrelas na rua?]

enquanto eu gemia
qualquer verso estúpido
vão
a um coração

[coração?]

vazio de qualquer luz
de luas minguantes que fossem!
Mais vazio que a rua escura.

Sangue
do dente
que furou um dedo
que fuça duas amígdalas
que provocam a ânsia acre
do vômito catártico de tudo-o-que-não-fui.

Enterneço-me
ao líquido gástrico
pastoso:
sou eu, meu céu
cintilado por estrelas
de ervilhas vermelhas,
meus olhos
mais brancos
mais leves que
minh’alma cheia de
espasmos lentos e frios.

Frio,
como a louça
do vaso,
agora orquídia salpicada
de versos vermelhos
no branco.

Não sei se já disse
que como
orquídias.
Já sei,
me disseste:
- Come só morango!

Falhei, não te ouvi.
Devoro cigarros
e sorvo as águas
de estrelas refletidas
no chão,
decaídas, imperfeitas.
Perdão.

domingo, 13 de dezembro de 2009

carne e unha


te quero
com a firmeza
que só tenho
comigo mesma
quando afundo
na pele a unha,
coçando uma coceira
aguda.





sábado, 12 de dezembro de 2009

O ÚNICO SOM

Não sou capaz dos silêncios.
Sou a palavra que foge
pra perto de ti.

Ausentes minha mão na tua
meu sopro em teus lábios
na nuca unhas dedos dentes.
Sentes agora a pressão dos nossos corpos?

[Eu ainda a sinto
sinto mais
tuas mãos murmurosas a pedirem
o que todo o resto
sente
mas nunca pede]

Febre suor força
meu abraço: te enlaço
[posso?]
e não te devo nada disso
nem êxtase, nem descanso.
Meu silêncio...
tu não pedes, dou-te versos.

Versos abertos, punhos cerrados.
E que importam os corações?
Descaso? Não...

Despiste os ombros
onde arde o som
do pingo
do suor
dos meus cabelos ralos.

Ouviste as notas
meio mudas, abafadas
de alguma lágrima
de enfado
que ainda está em mim.

Em ritmos alternados
seguras meus punhos sangrados
que batem abertos
apelos
te pedem
que peças
cansado
o único som:

tu, teu corpo e nosso silêncio.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

agarro

o grito

agudo

que brota

curto

da garganta

aberta

fresta besta

em pausa

dramática:


o sussurro

o espasmo lento

de um gemido

surdo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

dois perdidos numa noite estúpida
e surda ao apelo
das sensações confusas
do absurdo momento torpe
das tantas gentes sujas
voltiandando o cubículo quente
e carente do escuro, privado da rua
ruidosamente imunda
do revés do dentro
das palavras calmas
resistentes
distantes
dos silêncios duros
dos sussurros frios
às vogais
dos dois olhares oníricos
insistentemente imunes.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

post it

pego a pena
imprimo em
mim mesma
um poema
mundanamente
teu,
mudo.

mudo surdamente
enquanto leio versos absurdos
no teu silêncio ausente.

é bom sentir-me
assim soltinha
novamente
feito folha de papel,
voando em verso branco:
haicai flutuante
reticente. brando.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

desenho com giz
o asfalto molhado,
faço o rabisco disforme
solene de sempre
no chão tão duro, concrético
que o sorve no vagar de um amanhecer lento.

engole a boca asfáltica
as tripas vísceras órgãos genitais
de animais jazidos
no meu chão de giz sedento.

nele o tempo vai chovendo.
chove e insisto nas linhas molhadas.
chove e é quente.
chove e escorrem minhas inscrições
inúteis no lapidar eterno do asfalto duro.

o céu, eterno: ele começa em meus punhos cerrados.
[eles querem guardar o momento: estrangulam-no]
ele: todo branco de espanto
enverniza e incide um brilho estranho
no traçado de uma pata sobre um crânio aberto,
partido em três.

é quente, e o asfalto
expele-se em vapores noturnos...
expulsa em fumaças diáfanas
vapores encaracolados
o meu mórbido desenho.

minhas linhas
traçadas com custo:
café solúvel
em água fervente
excessivamente doce
pr'um dia de estio.

o ar, agora rarefeito,
todinho tingido de giz azul-escuro
incenso lento
eterno pulsar de fagulhas
que queimam minhas pálpebras por dentro,
que abrem meus pulsos,
mistura-se às veias porosas
secas de instantes seguros.

domingo, 29 de novembro de 2009

despetala-me

acordo já despetalada
e algum ruído ronda
as janelas altas da cidade baixa.

deve haver um equívoco
porque me olhas com horror
o mesmíssimo olhar
do meu espelho mudo:
cadê tuas pétalas?

{devo ainda agradecer?
tua cara nua
a perceber o espanto
que sinto sinto sinto}

e tenho de te frustrar:
uma flor de plástico
cujas pétalas ásperas
jamais caem...

então cadê as tuas?

jamais caem, a menos que
que as cortem à navalha
boca lâmina
dente podre
escavado o plástico.

vejo, vês:
sou só miolo
miolo mofado
miolo tosco, inverossímil
azul-cobalto.
plástico queimado
que vira cinza
sem atrativo apetecível.

vai. não te aborreças
com quem só pede.
eu pedi:
despetala-me!
pois não posso suportar
o peso lento
peso eterno de pétalas plásticas.

peço peço peço
te cuida
que o barulho da rua
não são carros, aeronaves
são pássaros dotados de dentes
que escavam
pouco a pouco
quase tão eternamente quanto as próprias pétalas
o plástico duro.

deseternizam-nos assim.
eu sempre peço: é preciso perecer às vezes.
e dói.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

transa em braile

De todos os livros possíveis
escolho aquele:
sem capa
aparentemente sem alma.

Epigrafado
um charme amarelecido
sorrindo-me, convincente,
entre vogais e alguns ais.

São versos de quem?

[pergunto-me a mim mesma
distraída do quase desespero
de serem meus aqueles versos raros]

Aproximo leio pois e quase
quase desvendo e
ele... ele me afasta de repente
com consoantes de outra língua,
de outro alfabeto.

Dialeto:
seria algum dialeto subterrâneo?
Errático decadentista
em verso branco
dolorosamente parido,
partido ao meio?

Insuportavelmente tomo-o.
Fecho meus olhos
passo os dedos
as palmas das maõs
e ele sussurra entre as minhas digitais.

E cega
sinto que não há assonâncias
no tal dialeto infernal,
desprovido de vogais:

vestígio de alguma escrita?
autógrafo esferográfico
do demônio dedicando
[sem ais, porque (já disse) sem vogais]
palavras sentimentais?

Bela ponte budapesteana
do medo
[que sinto sem saber]
de saber
de alguma sina que me una
eu, objeto, a
ele, outrora oferecido
com tanto afeto barato
banalmente sentimental
mas não menos belo.

Tantos outros como este
em minha estante!
Guardando pós e,
mortos,
passados
amores
presentes dados
escrita que persiste forte em alguma parte indistinta.

Cega, decido desvendar seu silêncio
poemático
toque a toque
transa em braile.
Devagar, pulsante
Possuímo-nos aos poucos:
penetra sua tinta em cada poro meu.
Absorvo
por fim
suas duras consoantes
num instante raro
só eu.

domingo, 22 de novembro de 2009

três de vez


noite morta


Diáfana alma aparente
movimentos lentos
frente aos olhos vagos
olhos vesgos, olhos ocos
dos monumentos humanos
cuja lágrima
[sem olho]
dança docemente
pela madrugada errática:
mistérios gratuitos
à meia luz
do interdito gatuno
do vago suspiro
iluminado, limpo
já sem ar, entanto.

......................................................................

castelo de cartas ao vento

Despojo desejos
inteiros, golfados
pelo ralo
catártico
buraco profícuo
vasto vaso
vasto mundo
cerâmico, profundo
branco imundo.

Embaralho agora
meu único baralho amarelo-velho:
faço castelinhos de cartas
colossais, piramidais
feitos só com ás
e me acalmo
do sopro fraco de tantos ais
levados, desfeitos
feito folhas ao vento...

......................................................................

janela aberta pra dentro

mais um pacto
notívago, desfeito.
é o efeito das semi-asas...
minhas ao meio?
não sei ser pela metade.

saiam todos,
abram espaço,
alas portas buracos poros
a minha janela
– que me basta –
por ela
– que é inteira –
cinzeiros, borboletas
não mais voam não mais entram:

ruflam asas
explodem, escorregam
se esvaem, se jogam.

minha janela aberta basta-me:
porque só ela agora resta aqui dentro de mim.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

venha ver o verde-pus

espelho lacrimoso:
meu olhar perdido
nas curvas da rua imunda
onde te vejo
– na saliva dos meus olhos suados –
flaneladamente polidos e
despidos de distinções seguras.

prata preteada
a rua
que só roda
a tua volta
em teu entorno:
ela caminha em ti!
[e também te sufoca?]

eu toco o oco
das minhas pupilas
dilatadas, convencidas
que nos vemos ambos...vês o verde?
o pus lacrimoso
que me cega as retinas tortas
distorcidas?

não: tudo é cinza.
trouxeste a flanela?
ajuda-me a
polir o verde-pus?
porque seduz
o gosto:

teu desprezo áspero
meus dentes rasgam
tua língua
na rua
a cuspir os versos
que te compus.

domingo, 15 de novembro de 2009

Silêncio, por favor.
Vi a placa, obedeci.
[os ventos vindos do chão, não]

Fecho os olhos: cinza.
Céu e Guaíba: cinza.

Subo no terraço de um dos prédios
mais altos
da beira da cidade:
sitiadamente cinza.

Lama pura
nas águas do lago cor de cobre.
Lama primaveril, resquiciosa
dos vapores das chuvas
que sobem do asfalto quente lá embaixo.

Na rua no alto do piso
altifalante, uma música
feito vinheta pronta
pro Natal entoa
um hino aquoso:
demencial.

Consumo meu cigarro
a longas tragadas de orgasmos
a céu aberto
[e pra ti: cinzas]
onde todos os pássaros
[sem asas como eu, tu:
asperamente sem asas]
me podem ver.

Na lama
da rua
do lago asfáltico
metálico olhei...
tua bocalâmina
de baixo sorria,
pedia [sim: pedias!] que eu
– eu, estrela [só da minha] vida inteira –
mergulhasse
[e pedia tão infantilmente
que quase cedi].

Não fui. Não dormi,
e assim a vida me passa
[pra trás?]:
entre tragos tragadas sorvidas
– em plena primavera quente –
na xícara de louça
nos lábios sedentos
por mais uma gota de suor
noturno: varrido afinal pelos ventos.

[E ainda não é noite
o bastante pra mim.
Ainda é de tarde, na verdade.]

Não vou dormir aqui.
Vulnerável: à mercê da palavra
poematicamente à espreita
de uma fresta entre mim
o que vejo
[Silêncio, por favor]
a ausência
[que cerro nos punhos]
o abismo
[que sorvo aos soluços]
e o sono
[que assusto às fraturas].

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Não. A estrela não está em ti
em mim
cintilando dores vazias.

E tão vazias quanto astros
que vemos brilhando
no chão.

E julguei que o astro-mor
fosse tua boca cheia de dentes,
pequeninos: infantis
sorrindo a cada estrela
visível da minha janela.

No subsolo
é que eu moro.
A estrela
aquela mesma que vias...
o vento desfez a poça d’água
onde ela apenas refletia.

sábado, 7 de novembro de 2009

O SOCO

Andava pela rua da praia
quando um sujeito
- sujo o sujeito -
[mendigo ou drogado bêbado desocupado?]
disse: me dá um... dá um...
Eu, claro, nem olhei.

sem vergonha!

ele disse.
e como se ouvisse o que pensei
repetiu mais alto:
S E M V E R G O N H A

Eu?
[eu, que tô de saia,
sem ser puta?]
[eu, que saio cedo
volto tarde?]
[eu, que subo-desço
o asfalto, a lomba
sem riscar o salto?]

Parei, olhei, protestei.
Disse a ele qualquer palavrão.
Ele: ele veio
veio vindo a mim
em mim.

Ri.
Aos risos e hematomas
contei o curioso caso a quem quisesse:
Foste à polícia?
Escreveste ao correio?
Louca louca, por que ris?

Seria bacana,
o cara iria em cana
eu riria em casa, na cama.
Tudo [o pouco] isso
viraria notícia, crônica.

Não. Não é bem isso o que procuro
o que proclamo.
Eu rezo, meu Deus, por um gesto
qualquer um que seja
de protesto.
Dou meu humilde corpo
a um vagabundo, louco
e peço: vem, me bate
bate forte: eu mereço.

porque eu também protesto.
Eu?
[que carrego sobre mim o peso de ser
quem eu penso que posso ser:
e isso não é nada]
Eu?
[que na cama derramei o gozo
falso
por alguém que não me ama]
Eu?
[que parto apressadamente
de qualquer parte]
Eu?
[que nem sou parte de
um todo que é parte de
algo que é
parte de mim]

Eu, tão pouco
que me faço
ou fazem de mim,
rio: sou tudo
no sufoco de um outro
corpo, pra quem gritar já não basta.

Estou a serviço do soco.

sábado, 31 de outubro de 2009

dos balanços

Na praça
a criança
no balanço
voa.

Voa acima
Voa abaixo
de mim.

O abraço
das pernas
que laçam
a sombra

que sobe
que desce
em mim.

Meu braço
embala
o balanço
o abraço
que enlaça
a criança
que sonha
que ri.

================================

Conhecendo o céu,
sou incapaz de sentir a terra.

Caí do balanço
E sinto o chão: duro
doendo em minha cabeça.
Mas eu não vejo a terra.

Não.
O balanço caiu de mim
Está no chão impuro,
impróprio pra ele:
desconhece o papel
de levar quem queira
como eu
ao céu.

Balanço não pensa
Por isso passo pela praça
e peço-lhe:
"Leva-me daqui!
Consegue um traumatismo
mas não pra ti".

E dele tombam pessoas
que nele sentam - como eu -
predispostas à queda
sutil? veloz?
quando julgam abraçar
com pernas,
tocar o céu
ou o único que resta:
o ar.

Caio. E preciso de mais e mais
um cleck arrebentando
a corda
um estrondo partindo o assento
no chão da praça.

Mas o céu continua em mim.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

o silêncio, a ausência: o branco.

dizem que branco não é cor, é a ausência.
mas eu enxergo o branco...
as nuvens existem também, porque as vejo, as toco, as beijo.

[a ausência pode significar mais do que a presença]

meu sabonete é branco;
minhas paredes
meus globos oculares
meus poros
cada-vez-mais-brancos.

[não vês o branco presente no céu cinza - que eu vejo -
no céu onde voam aviões brancos, levando e trazendo as gentes que se desencontram
que se ausentam sempre de alguém
as gentes brancas]

meus cabelos:
um dia brancos
[quando?]
Das Dores: branca
[repintada muito recentemente]
meus sorrisos metálico-brancos.
e até o meu cigarro é branco.

[o branco tá na folha que repousa na minha escrivaninha,
me olhando - à espera de tinta que a preencha?
o branco tá em tudo. é mais econômico fazer as coisas em branco?
ou poque sem o branco nada seria nada? ou ele existe para que possa,
ele sozinho,
ser o nada sem deixar que nada além dele seja o nada?]

sim, a fumaça do meu cigarro - que alguns veem azul -
eu a vejo branca. não: azul e branca.
o céu azul, Das Dores branca.
a agonia do moribundo enxerga branco.
os cegos passaram a enxergar em branco.

não as fotos que eu
as prefiro branco e preta
à preto e branca.
branta - prebro - prebra - branto
o que já rima: pranto
não: alento, tormento.
eu aguento o pranto
[com meu silêncio preto]
porque sou hoje toda branca.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

esta é a história de uma história que queria nascer
um pequenina história, creio eu
- És pequena?
pergunto eu a ela, porque hoje só estou dada a umas poucas linhas. e, ainda assim, pensando se quero contá-la
- Sou como uma menina de tranças muito compridas, mas magricela. Ninguém me alimenta, ninguém me dá ouvidos... Acho que é por isso que morri. Bati à porta de muita gente que quisesse me contar, atravessei anos, séculos. Sou uma velha varizenta e carcomida na minha cadeira de balanço, mas ainda assim com as minhas tranças, que, de tão velhas e pesadas e tão cheias de fios, não se balançam comigo. Por isso fico olhando a cortina de tule rosa, essa sim voa ao mínimo vento...
- Estou sem paciência, minha filha, diz logo teu conteúdo, aproveita que, em sonho, captei a tua vontade, quero te contar... só não tenho a noite inteira!
- Não tenho mais nada a dizer-me. Foi o tempo que carcomeu o que tinha a dizer uma velha história? Histórias também ficam esclerosadas? Logo eu, que me achava intemporal! Verdadeiramente: o que podem histórias contra a vida? As vidas dos outros, tão cheias, tão vazias, tão vadias... E é assim que, sem mais o que dizer, invado vidas. Hoje sou esta velha contemplativa; ontem fui tu, uma jovem em busca de transformações das dores e angústias em umas poucas linhas. Diz-me: o que serei amanhã? Digo-te: amanhã, não sejas tu, venta-te!

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

só lida


- Teresa, não vai....
- Vou.
e eu fui. e eu voltei.
pra onde?

era uma tarde chuvosa, quando embarquei; ensolarada, agradável, quando cheguei de volta. um sinal? não, é só o clima, me fazendo querer sumir. braços cabeça pernas alma: nus. relógios quadros livros camas porta-retratos malas pingentes postais pulseiras pinguins lápis e rímel e o próprio sol a derreter-se. e eu dura. a menos que chorasse cera. a rua úmida e eu quase caindo. cera pelo chão asfáltico, como o falso barro
- Vai cair, Teresa.
eu nunca soube olhar pro chão e identificar barro sólido de cremoso. mas não caí, porque eu tava seca.
- Fome? Um café ao menos?
era eu dialogando com meu cérebro de cera, pensando que algo poderia preencher meu estômago. talvez abrisse o canal estomacal, e então eu conseguiria chorar cristais de vela, vela sete dias, vela aromática. minhas lágrimas teriam alguma utilidade, iluminariam a escuridão de alguém (irônico isso, porque já disse do meu medo do escuro), orientariam preces a algum defunto em cemitério, seriam oferendas em rituais de batuque. ou de enfeite em alguma casa, o mais provável. este enfeite, tal qual o sofrimento alheio, a causar "oh, que lindo!", até que se esqueça a tal velinha acesa e o incêndio se faça: con-ta-mi-na-ção enfizema morte por carbonização morte cerebral vegetal.
era tão simples admitir
e gritei e todos olharam e meus olhos de cera cintilaram mais e agarrei com mais força entre meus dedos a alça da valise
- Teresa, fica
- Teresa, vai embora
e já não sei mais o que me foi gritado... eu fiquei, eu fui, eu voltei, eu parti, eu segui em frente? por quê?
- ALGUÉM TÁ SENTINDO ESSE CHEIRO SÓLIDO? SÃO ROSAS QUE JÁ MORRERAM!
- Teresa, acorda! Não delira! Segue, o taxista tá esperando.

mas a cera endureceu. fiquei só, presa no asfalto.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

para mim mesma, a especialista em mortes....


... menos na minha.

vaguei pela casa, pelo silêncio emparedado... mais uma planta que morre, ainda que eu me esforce por não comê-la. e não só não a como, mas rego, deixo-a livre para respirar sem mim, ponho-a no parapeito, cuido para que o sol não a fira! tudo inutilidade: por que eu não me convenço de que eu não posso criar plantas? será que meu ar as contamina? ou sentem-se usadas [meros enfeites a servir-me de "oh! como são lindas", preenchimento de um espaço no aparador empoeirado, no cantinho da sala onde não se poria nada que coubesse, a não ser uma planta]? e adiantaria eu agora levantar e, com a melhor voz que a esta hora posso ter, dizer que não é nada disso?
não, definitivamente vegetais não compreendem palavras, não diferenciam timbres, tons, escalas... não veem lágrimas e não dão bola pro azul, tão lindo na parede!
e eu a tentar ressuscitá-las. elas, insensíveis, inconstantes, ingratas!...
eu devia queimar todos os meus livros, matar-nos na fumaça, na poeira, na fuligem, no pó, no odor do fogo, no calor de horas como estas. estilhaçá-la pela janela: "vai meu bem, vive no azul do céu, fura o asfalto, cria raízes... deus te crie, vai pro inferno que eu vou ficar". eu sempre fico.
depois [e eu sobreviveria ao fogo, porque sempre é assim: está além de meu poder de decisão. porque o fogo, sim, é meu amigo. porque quedas não me matam, isso quando caio], estantes feitas de tijolos e tábuas, livros de botânica. eu seria uma perita em botânica, digna e sem plantas, pois elas só são lindas no papel, na minha cabeça, naquilo que insisto em enxergar [porque sou idiota. devo ser eu o vegetal, e elas que me têm].
mas que nunca é.
de verdade, nada é.
eu não sou.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

o motoboy

para siane

tinha tudo para ser uma noite como outra qualquer, uma reunião de amigos, os mesmos de sempre, ainda que o lugar fosse outro.
de repente ela surgiu na escada, subindo ao segundo andar do restaurante. marcos não sabia o que sentia na hora, ou se foi sentir só depois. não sabia igual... ciúmes? [ela estava acompanhada] ciúmes? [mesmo que continuasse sozinha, ela estava muito melhor do que da última vez, aquela vez que a viu na rua e, querendo evitá-la, se escondeu por trás do negro guarda-chuva] vontade de ter o guarda-chuva denovo? [seu sorriso se desfez num breve gesto de incômodo] prazer? [seu sorriso se desfez...]
a verdade é que ele não guardava expectativa alguma sobre aquela noite, e seu sentimento mais amargo deve ter sido a expectativa surgida, feito uma injeção de adrenalina: a noite a partir dali poderia ser outra. "e se ela viesse sentar comigo?" "e se eu forçasse a situação, fosse até o banheiro e mandasse um torpedo pro celular dela?" "mas o que eu diria?" "tu tá muito bem :)" "oi, eu sou um otário, imbecil, um crápula.... =/"
em vez de fazer qualquer coisa, marcos voltou-se para si mesmo. cabelo sem corte, usava a calça que sobrevivera limpa aos tempos chuvosos [antes que tivesse se deixado ver no dia do guarda-chuva, estava mais bem vestido], larga e com a barra por fazer. a jaqueta e a cara eram as mesmas de sempre.
voltou-se para ela, analisando-a: usava roupas provavelmente novas, se arrumava para alguém que não era ele. se arrumava para ela mesma? para quem a acompanhava? cabelo mais curto, unhas vermelhas, olhos suavemente pintados. usava salto alto. e marcos momentaneamente se sentiu feliz por vê-la assim. mas só momentaneamente.
ele foi embora em seguida, não sem antes passar na mesa ao lado. era sua chance de, ao pé de seu ouvido, lançar algo criativo [ou sincero], ganhar a noite, carregá-la consigo: "eu já vou indo... será que..." "olha, sei que eu tô horrível..." não: "sei que pareço um motoboy, mas tu gosta [sempre gostou] de andar de moto..." "vem comigo, vamos conversar, eu deitado e tu deitada sobre o meu peito: tô com saudade".
não, ele não teve capacidade. no máximo, parou e, de longe, deu um tchauzinho, permitindo que ela mesma constatasse: "nossa, ele parece um motoboy".
ela também não iria com ele, porque esta não é uma história feliz [para ele].
pra ela sim, porque tudo aconteceu como ele prevera, em seu primeiro pensamento quando a viu: ela acabaria a noite nos braços de outro.

Leia outro conto testemunhal, criado a partir da mesma situação descrita neste: Continho em Si Maior (por Edna)

sábado, 12 de setembro de 2009

fragmentos de uma tarde na free way.

ao contrário do que pode sugerir o poema no post logo abaixo, eu estou bem. bem mesmo.
só queria ter um pouquinho mais de tempo pra escrever, sinto falta disso, de organizar minhas invenções, telegrafar certos pensamentos que vêm surgindo... ou arquitetar mais detidamente palavras que pretendo fazer literárias. acho que a solução vai ser voltar a anotar em caderninhos e pedaços de folhas, compondo nos lugares mais inusitados. às vezes penso que seria o ideal uma máquina que gravasse pensamentos.
hoje, por exemplo, estava no unesul, rumo a osório, pensando.... pensando!
[e me sentindo culpada por não estar lendo. mas daí me autojustifiquei: se eu não aproveitar este ônibus confortável pra pensar nas coisas, o que vai ser?]
e o pior é que eram só coisas boas. tudo girando em torno de uma ideia que, de tão simples, de tão lugar-comum, fica difícil de explicar sem parecer uma ridícula: as coisas acontecem quando têm de acontecer. o famoso "cada coisa tem seu tempo". e como explicar isso?
um dia, surge o instante-já: eu não sabia ler poesia. mesmo assim, tenho uma caixa, uma espécie de relicário, cheinha de versos melosos batatinha-quando-nesce, que um dia uma outra Carolina escreveu. entrei pra faculdade de letras e ainda não sabia entender poesia. [será que hoje eu sei?]
e por que queria fazer versos? versos ruins, que deviam, não sei, satisfazer a alguma coisa quase fisiológica do meu corpo. versos horríveis, mas já tive quem os lesse, quem me questionasse sobre eles, sobre como andava a minha produção. e como isso foi fundamental! como tenho gratidão.
mas me incomodava não entender poesia. eu queria entender, por exemplo, a rosa do povo... ao menos a sensação de que algo faz sentido hoje eu tenho. eu pego papéis impressos em versos, e as palavras sussurram pra mim. o sentido se faz. sem que eu percebesse, de repente, tudo ficou claro. será que simplesmente aprendi a ler o que eu quero neles? como na clarice lispector, que só fui entender depois de formada em letras. e será que a leio ou me leio nas palavras dela?
aos dezesseis anos, tentei ler crime e castigo. mas eu era uma jovem feliz demais pra conseguir suportar tanta dor. parei de ler. taí uma opção de leitura pras próximas férias... será que eu consigo?
até que ponto sou eu que escrevo ou leio? até que ponto estas linhas custosas me ajudam a entender tudo isso? [isso que é como uma reconstituição do que eu pensava pelas seis da tarde, rumo ao pão meu de cada dia]. até que ponto aquela menina sem-noção, que pintava a boca de roxo, usava scarpins vermelhos da irmã e tentava ler dostoiévski, poetisa-desgovernada e apressadamente sedutora, é parte desta que hoje não usa batom, veste tênis nos pés e sorri ao rezar pai-nossos e ave-marias?
[e sorrio com lábios, dentes, gengivas, língua, obturações, piercing, rugas dos olhos, bochechas, covinhas. eu sorrio com com a alma]
e talvez esta Carolina que agora fala seja um delírio de uma mente cansada e um corpo desnutrido.
[ok. ok. não tenho a pretensão de ser definitiva. só fico com um pouco de medo de me sentir tão bem assim, tão leve... o que o cosmo reserva pra mim? como diria woody allen: ficarei paraplégica? por que tanto obnubilamento?]
era pra ser um post cutinho. Carolina com muito sono.
[pensando bem, agora acho que valeu a pena não ter lido durante a viagem. e torço para que nunca alguém invente aquela tal máquina de gravar pensamentos]

domingo, 6 de setembro de 2009

Canção

Quero um dia para chorar.
Mas a vida vai tão depressa!
e é preciso deixar contida
a tristeza, para que a vida,
que acaba quando mal começa,
tenha tempo de se acabar.

(Cecília Meireles)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

joguei tudo no lixo
e taquei fogo.
beijo.

domingo, 23 de agosto de 2009

as flores naturais morrem.

14:52

não sei se o que me emociona são as flores, seu perfume, sua textura, seu sorriso feito de pigmentação...
ou
a lembrança antecipada de tudo isso: porque seu destino é a morte muito em seguida.




as flores são só mais uma lembrança que me dói.
vejo flores podres.

16:35

toddy, saltines & doriana
enquanto como, de pé, em frente ao balcão da pia da cozinha, penso: "por que será que flores são o único presente pra morto?"
arrisco-me a hipóteses. talvez a antítese seja o belo [e presentes se querem belos], a morte e a vida, a bela vida, mas perene. e é por isso que as flores dos mortos são sempre as mais bonitas: é o orgulho de estarem vivas, quando tudo em volta é morte e cinza.

20:00

sentada na sala, ainda sinto o cheiro de brócolis cozidas. são quase flores, seriam ainda mais, não fosse o excesso de cozimento. a esfriar, no parapeito da sacada, só os talos de brócolis. que pena!
eu queria comer flores.
paro, pensativa: este é o momento da escolha, o raro momento de escolha: gérbera, rosa, azaleia ou A orquídea?
como devagar a branca orquídea. guardo as demais flores e seus galhos para mais tarde, para quem sabe outro dia... mancho meus dentes com a sua estampa. acho que nunca mais eles serão brancos: salpicam-se de vermelho, como vampiros após ardente mordida.

agora estou bem.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

“A única coisa que lamento na vida é que não sou outra pessoa qualquer” (Woody Allen)

Não vim aqui hoje pra contar uma história. Nem sei, na verdade, se sou capaz de fazê-lo... Se as minhas tentativas servem, então digamos que, na maioria das vezes, é isso que venho fazendo aqui. De forma hermética, eu sei. Mas agora estou sendo sincera, a protagonista sou eu.
Na última madrugada, tentando encontrar o sono, descobri meu grande defeito. Um click? Uma epifania? É que eu passo o tempo todo pensando, avaliando, discorrendo, e ontem não foi exceção. Lado bom: não precisei chegar ao ponto de gastar com psicólogo. Lado crucial: terei coragem pra mudar?
“Não abro mão de mim mesma”, sempre disse. “Quantas vezes terei de morrer e renascer das cinzas?”, choramingo! Será que algum dia, de fato, decretei a minha morte?
Não vou mencionar a minha grande descoberta. Sinceramente, não ganhei nada com ela, além da chance de mudar. E esta chance, por si só, já é o meu carrasco: conviverei com a eterna frustração, caso eu não mude... Declará-la aqui seria assumir compromissos com quem, seja lá quem for, ler estas linhas. E eu só posso me comprometer comigo mesma. Antes que eu quisesse, já me comprometi, já assinei algum contrato de cláusulas obscuras em letras transparentes: padecerás eternamente com a tua consciência, porque estás sozinha no mundo, esta é a Verdade! Tua voz será sempre muda; tuas palavras, opacas a todo o resto. Tu e a ti mesma: isso é tudo que terás na vida.
O mais importante da descoberta é o seguinte (e alguém por favor se pronuncie, se puder me ajudar, mesmo sem saber do meu grande defeito): como decretar a minha própria morte sem abrir mão de mim mesma? Eu sou isso que descobri, mesmo sentindo um nojo profundo. Ser eu mesma extrapola a minha própria vontade de sê-lo.
Desconfio de que esta descoberta sempre esteve dentro de mim. Se agora tudo parece tão evidente, por que fiz questão de não dar importância? Será que é porque eu “não abro mão de mim mesma”?
Já que tudo é incompreensão, as palavras são opacas: não quero que ninguém mais me conheça. Mato-me. Daqui em diante: finjo-me, início da mudança.
Um dia eu mudo de vez: que é o não-revelar mais nada.

sábado, 11 de julho de 2009

A Coisa Insignificante

Maria Alice sentou-se na pequena mesa do Café Suprème e, enquanto esperava que a agência bancária do outro lado da rua abrisse, pediu um expresso duplo. "Poderia pensar na vida", pensou ela, "mas não tenho nada de interessante pra pensar". Abriu a pasta turma 32 e pôs-se a corrigir provas. Sabe como é, sempre se ganha um tempo, afinal esperar é o inferno. Apoiou fortemente os óculos sobre o nariz grosso, seus grossos dedos de solteirona sem anéis seguraram então com autoridade a caneta bic vermelha. Antes, ainda, sorveu um longo gole de café.

As moléculas orgânicas são substâncias químicas que...

Era interessante como os galhos das árvores se balançavam ao sopro daquele vento outonal. A árvore era um objeto de todo interessante: de que espécie seria? com aquele tronco marrom que não era marrom, talvez um cinza de árvore morta... cinza não, porque marrom e cinza evidentemente não têm nada a ver. Bege, isso, bege escuro. As folhas pequenas, verde-opaco. Haveria frutos? Na certa, seriam pequenos, delicados, feito filhotes prematuros de cão, num rosa desbotado, quase morto, rosa-antigo apagado com a borracha.

... que contêm na sua estrutura carbono e hidrogênio, e muitas vezes com oxigênio, nitrogênio...

Maria Alice sentiu ternura por aquela árvore, tão insignificante no meio da avenida. Não era esbelta, alta, pomposa, viva, luminosa... alguém mais haveria de sentar àquela mesa, pondo-se a reparar naquilo que não oferece qualquer possibilidade de catástrofes, ofuscamentos? Algo que fosse tão belo que um motorista, ao examinar o esplendor da refração dos raios solares nas suas flores e seus verdes vivos, batesse o carro ou atropelasse um pedestre. Maria Alice sequer pensava nas flores que primaveris desabrochariam daqueles galhos. Angustiou-se por ainda não ter podido usar sua caneta, que embora simples, representava o maior instrumento de poder de que dispunha nas últimas décadas. Para atrapalhar, aquela árvore. Aquela árvore ali, parada. Sorveu o último gole da taça, pensando que pensar sobre árvores era uma saída digna: melhor que a sua vida, melhor que corrigir provas sem erros.

... enxofre, fósforo, boro, halogênios e outros.

9:30. Quero outro café. E se eu pedisse uma fatia de torta? [em voz grave] Moça, eu quero um pedaço de alguma torta com os frutos daquela árvore ali... eu não sei qual é sua espécie, mas tu não vê os frutos, não me diz tu que frutos seriam aqueles? E que sabor, não sei, tu acha que eles têm?... pela cor, ácido, ácido... pode ser uma torta de morango. Tem aí? E mais um expresso duplo, por favor.

Maria Alice não pediu. Ela nunca pedia nada. Pensou - e pensou além: certo que estaria louca, porque a árvore não tinha frutos. Porque ela não poderia jamais pedir qualquer torta, porque diabéticos não pedem torta; eles comem, no máximo, morangos! Porque sentia suas banhas caírem pelo cós das calças; há tempos tinha que fazer uma dieta: era a realidade mais evidente. Olhou para a árvore: "tão bonita, tão pequena". Mas não desconfie jamais do poder de uma coisa insignificante: a catástrofe estava feita! O esplendor é sempre o mais raro. Quantas pessoas realmente especiais a gente conhece ao longo de uma vida? Quantos dias especiais contém a vida de alguém? Quantos gênios existem na face da Terra? Quem é realmente bonito o tempo todo? Tudo exceção! E nem por isso as desgraças deixam de acontecer.

Aquele dia era comum na vida de Maria Alice. Era comum estar sempre esperando por algo. Comum mesmo era desde pequena estar privada dos doces, ter dores nas articulações grossas, banhas que sempre extrapolavam as suas roupas. Não sei se é bem por isto, e ninguém nunca sabe ao certo [nem Maria Alice saberia], o fato é que ela saiu correndo com a caneta e sua pasta, atravessou a avenida e trepou na árvore: dali continuou a corrigir as suas provas, porque aquela árvore era ela.

Para os químicos antigos, as substâncias orgânicas eram provenientes de fontes animais ou vegetais...

quinta-feira, 9 de julho de 2009

sem-açúcar, sem-afeto.

não me peça palavras de quem se aliviou:
eu só sei fingir o gozo
as palavras que te dei, que te dou
simulam o que eu sendo não sou.

terça-feira, 7 de julho de 2009

sem-palavras.


sexta-feira, 3 de julho de 2009

eu só quero uma página em branco.

Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Não entra em gênero. Gêneros não me interessam mais. Interessa-me o mistério. Preciso ter um ritual para o mistério? Acho que sim. Para me prender à matemática das coisas. No entanto, já estou de algum modo presa à terra: sou uma filha da natureza: quero pegar, sentir, tocar, ser. E tudo isso já faz parte de um todo, de um mistério. Sou uma só. Antes havia uma diferença entre mim e escrever (ou não havia? não sei). Agora mais não. Sou um ser. E deixo que você seja. Isso lhe assusta? Creio que sim. Mas vale a pena. Mesmo que doa. Dói só no começo.

Clarice Lispector (2004:157)

quarta-feira, 24 de junho de 2009

futuro do pretérito

amar não é o caso, porque eu não sei amar.
[eu não sou gente]

digamos então que eu soubesse...

[e também façamos de conta que um 'quando' é igual a um 'se',
é que, infelizmente, a língua não é tão opaca assim.
e como eu gostaria que ela fosse, que não fossem diferentes um e outro]

quando a gente casar,
meu lábio pode tocar,
todo dia, de propósito,
o cristal fino do copo,
[para te ver sorrir em resposta ao som metálico]
pode meu corpo repousar,
todo dia, ao teu lado na cama,
[nunca cansado]
atento às tuas pulsações, porque meu ouvido reposusará no teu peito,
e nem precisarás dizer nada,
[porque a língua não é opaca]
porque teus dedos nos meus finos fios de cabelo
comporão melodias pulsadas conjuntamente entre mim e ti.
[como um piano]
minha mão percorrerá em silêncio a tua barriga, as tuas coxas
[e meu ouvido ali
porque só sei, e continuarei sabendo assim,
ouvir no teu corpo]
como uma pata felina, gelada.
quando a gente casar, não haverá o que dizer
[poderemos emudecer?]
em futuro do pretérito, meu tempo verbal.
nem haverá espaço para, levianamente,
'quando' ser trocado por 'se',
porque agora a língua é opaca
para alguém que não é gente.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

morte à Clarice Lispector (ou a qualquer barata que a ela se assemelha).


terça-feira, 16 de junho de 2009




anfetaminas no corpo e mente onde não há espaço para mim. sou tão espaçosa que jamais me trancariam em uma caixinha de música [onde eu seria a bailarina a bailar suave, a bailar doce entretendo os olhos calmos de alguém que me olha e se cansa de me olhar e me fecha num tapa de volta à caixinha pequena, meu mundo], porque lá não há espaço: eu não danço suave. eu não sei dançar.
podia haver anfetamina para os olhos. não para enxergar melhor, apenas para senti-los normais, para que cumpram decentemente sua única função: enxergar. [e não dançar. se bem que eu já vi olhos dançantes: dança estática em meu corpo.] e não enxergo mais o que vem de fora, e sentir não conta, é verbo genérico: a gente sente gastura, medo, arrepio, angústia, o grito da palavra impronunciável presa ao estômago. se tendo enxergá-la, ela foge para o meu intestino, depois se mistura ao sangue do meu útero. vaga pelo meu corpo como mãos nervosas a me violentar os poros e fios de cabelo.
às vezes, consigo prendê-la na garganta, como hoje [não é uma palavra, não tem radical, forma, conteúdo semântico.... materializo-a em morango, pois, preso no esôfago, na glote a sufocar-me até a morte], e gozo de êxtase ao imaginar o meu vômito suave. eu enxergaria o morango, vivo, a dançar para mim.


quinta-feira, 11 de junho de 2009

"eu quero o fluxo"

não. é mentira.
acho que, desde que me entendo por gente [e não sei quando foi isso... às vezes desconfio de que seja gente], sei o que eu quero. mais ainda: o que não quero pra mim. mas me pergunto: se tantas vezes isso muda, não seria o mesmo que não saber? é, dizem que objetivos impulsionam a vida da gente, então tudo valeu a pena.... também não sei. eu queria é querer o fluxo: deixar com que tudo aconteça sem o meu consentimento. sou cheia de vontades, contudo. eu penso que mando, não mando em nada. sou, como disse certa vez, um folhetim intimista escrito por uma barata.
é assim que me sinto, pois... pego-me dialogando, no ônibus, antes de dormir nos meus colchões empoleirados no chão frio deste apartamento, servindo-me em algum restaurante da cidade, com a minha barata-autora. o que ela destina para mim? qual é o próximo capítulo? quais são as personagens que botará no meu enredo principal? ah, fico puta quando sua criatividade falta, e ela vem com os mesmos conflitos, algum dia já citados em algum capítulo distante. nem a mim ela anda conseguindo surpreender, porque já saio desvendando as aventuras que se me apresentam. o que será que ela quer adiar com essas repetições? por acaso me acha boba, ou crê que os leitores são medíocres e desatentos? ou me testa, a ver se esta protagonista já evoluiu o suficiente, a ponto de rir, enquanto espera a próxima novidade?
devo agradecê-la, por hora, à guisa de conclusão destas palavras de feriado: de novidades estou legal. novas personagens a me rodearem, a fazer do dia lá fora mais bonito do que está. já disse em outro momento: tudo é lá fora agora.
eu é que sou dentro, eu sou o fluxo em pessoa.
[não sou gente.]

terça-feira, 9 de junho de 2009


quarta-feira, 3 de junho de 2009


terça-feira, 26 de maio de 2009

lusca-fusca
fusca-lusca
[e vice-versa]
está off, está out
tá no front
como sempre
sempre foi.

mais um pacto
noturno
notívago
demoníaco:
saiam todos,
abram espaço,
alas portas buracos poros janelas
por elas
cinzeiros, borboletas
não mais voam não mais entram
explodem
se esvaem, escorregam
se jogam.
saiam.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

eu sou...


Fiz o teste indicado pela cintilante, olha só o que deu:

Que livro é você?

"O vampiro de Curitiba", de Dalton Trevisan

Descolado, objetivo e realista. Cult. Você deve se sentir mais à vontade longe de shoppings, da TV e de qualquer coisa que grite “cultura de massa”. Nada de meias palavras: a elas, você prefere o silêncio. Você não vê o mundo através de lentes cor-de-rosa, muito pelo contrário. Procura ver o mundo como ele é, entendê-lo, senti-lo. Às vezes, bate até aquele sentimento de exclusão, ou de solidão. Mas é o preço que se paga por ser um pouco "marginal". Não se preocupe, pois você atrai a admiração de pessoas como você: modernas no melhor sentido da palavra.
Em "O vampiro de Curitiba" (1965), Nelsinho protagoniza uma variedade de contos, nos quais ele busca satisfazer sua obsessão sexual vagando pelas ruas de Curitiba - paralelamente, esta cidade de contrastes se revela ao leitor. A temática e a forma já denunciam: este não é um livro para qualquer um. Tem que ter cabeça aberta para enfrentar a linguagem nua e crua de Trevisan, que é reverenciado pelo leitor capaz de driblar velhos ranços burgueses.

Link do teste: AQUI.


terça-feira, 28 de abril de 2009

Da vida e seu processo polissêmico

Este artigo pretende, de forma resumida, analisar os indivíduos habitantes deste planeta Terra, divididos em algumas categorias simples. O pressuposto básico para esta divisão, cabe ressaltá-lo desde já, é o próprio mundo e sua condição ontológia de ambiente repleto de problemas de interpretação. Passemos à análise das categorias.
Há quem não entenda textos escritos, algo até aceitável, porque não são todos que têm o hábito de ler; há também aqueles que não entendem gestos; principalmente, existem os que distorcem os fatos, enxergando e interpretando só o que querem.
Existe, ainda, uma outra categoria (e nada impede que indivíduos estejam também entre as categorias supracitadas, as possibilidades são e sempre serão infinitas): os sem-atitude, a saber, pessoas que, além de não agirem, botam tudo no rabo daqueles que agem. Agem errado às vezes, mas agem.
Eu, enquanto pessoa humana, exponho então, à guisa de exemplificação e de conclusão deste trabalho, as várias categorias às quais pertenço: a das idiotas¹ , a das vacas² e a das egocêntricas³.
Conforme se pretendeu salientar, fica entendido que cada indivíduo, à medida que pode ser incluído nas mais diversas categorias, pode também criar as categorias necessárias ao seu universo particular (do mais sacro ao mais vulgar) e nelas autoincluir-se.
o
o
o
o
o
o
¹ "Idiota é quem diz idiotices" (GUMP, Forest).
² Vaca: n. sf. 1 a fêmea do boi; 3. no jogo do bicho, o 25º grupo, que corresponde ao número da vaca (o 25) e abrange as dezenas 97, 98, 99 e a centena 00; 7. mulher de vida devassa. Conf. Dicionário Houaiss. (Já que, como espero ter ficado claro, tudo é uma questão de interpretação, dependendo da cultura, vaca é sagrada)
³ Uma pista para a definição: sou tão egocentrada que me masturbo olhando para a minha própria foto. (Como a pessoa que escreve este artigo é, além de tudo, muito didática, cabe acrescentar aqui mais uma forma útil de definição, a por analogia.)

sábado, 25 de abril de 2009

cala a boca
cala-boca
calaboca
boca
cala
bo
ca.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

eu hei de amar uma árvore.

seus galhos finos
[clek]
estalavam-se.
quanta dor ali naquelas folhas secas?
frágil, entre minhas palmas
não mais árvore, não mais vegetal
[ser vivo morto].
deixa, por isso, de ser uma árvore?

podo, podas, podamos...
quantos sonhos naqueles galhos?
clek, clek, clek
um a um, com meus dedos trêmulos
espedacei. com raiva? não.
com dó? talvez. secura de alma.
pupilas na seiva verde, fraca.
[sim, ainda há seivalma]

quarta-feira, 15 de abril de 2009

envelhecendo...



domingo, 5 de abril de 2009

Não tenho mais dentes. Tudo me é amargo. Ou oferece-me sangue que me adoce? Uvas fervidas no pão são doce, seu cheiro é doce, sua textura é tenra. Engana-te: não há sementes a serem cuspidas, não há choro que saia de poros secos, há só o mar logo aí, em frente, rente a ti. Tu és o mar, imenso, disforme e envolvente. Eu tenho medo de coisas assim, já reparaste? Viste que raro me banho em suas águas?
Não posso mais com seringas, já não tenho veias. Imploro pelo meu último cigarro. Porque pior do que não o ter, é tê-los todos, acendê-los todos, um a um, nas guimbas já tragadas, nas memórias de guimbas. Penso: será este o último? E nunca é! Quem me trará o último, quem me anunciará que não há tempo para mais nada? [apenas para um último cigarro e para uma prece intercalada às tragadas] De olhos vendados, conhecerei sua voz? E a tua, continua igual?
Sem dentes, sem seringas. Aceitas que eu te sorva?

terça-feira, 31 de março de 2009

não é mais um sentir.
nem um tal de desatinar,
coisa alguma a partir
de ti
[morri, morre: dorme!].

já é abril e venta
venta em porto alegre.
o frio chega de leve
chega à noite
e me acalenta.

surpreende-me à espera:
olhos, pupilas, pálpebras,
tudo imóvel
[menos meu penteado de fera];
a madeira do chão, meu corpo: fogo.

quem sabe me descongela?
desfaz meu sorriso fixo de bobo?
[eu, monalisa em chamas]

me engole, pois - já sei:
meu único desatino, meu bem,
são as borboletas púrpuras
[ao me espreitarem da janela]
a baterem suas asinhas,
e eu a arder.

domingo, 29 de março de 2009

fragmentos daquilo que foi, não foi, e depois quase foi de novo.

- Sou uma pálpebra sem olho a mirar-te. E tu, quem és? Algo além do teu reflexo no espelho, desintegrando-se a cada olhada minha?

- Eu sou um olho fechado. Mas você sabia que quem vê é a alma? Preciso revelar um segredo: eu vivo apenas durante o sono.

- Talvez seja então a minha alma que se desintegra, até porque meu sono é minha morte. Mas, ainda assim, guardo-te: mesmo que não vivas mais por mim, vives em mim.

por Carolina e Juliana Vizo.

sexta-feira, 13 de março de 2009

passei no zaffari e comprei um potão de chimia de uva. decadente? talvez. desejo de comê-la toda com pão quentinho? com certeza.
houve um tempo em que tudo se renovava nesta época de recomeços: recomeço das aulas, reencontro dos amigos, que se dispersavam por aí nas férias, aquele frio na barriga, aquele deixar-de-ser-tão-criança e ir para o segundo grau!
minha mãe à beira do fogão, fervendo uvas e mais uvas... aquele cheiro se expandia pela casa toda... jamais poderia haver melhor doce. [e agora saboreio este, só: eu, os pães, as lembranças do que antes foram uvas.]
não há mais uvas, não há mais mãe a responder-me as minhas questões sobre a vida, negando-as, portanto respondendo-as sem saber. entre uvas e vapores, novidades, e ela se recusando a me enxergar, só me dizendo: come. queria tanto dizer a ela, me fazer entender, entender o que se passava... come! come que tá bom, prova só!
e provei de tudo. creio até ter estragado meu paladar, tudo se me afigura amargo, menos este pote de chimia barata, o que me resta em uma tarde vazia de sexta-feira: comê-lo todo, degustá-lo junto com meus fantasmas - porque hoje sou eu que os assombro!
[mas estou tranquila, sinto o cheiro da fervura da uva, minha nostalgia olfativa, que tudo renova.

é tudo novo de novo.]

terça-feira, 10 de março de 2009

Auf der anderen seite

[Ayten, fugindo da polícia turca]

[te mete com o título em alemão! quem vê até pensa que eu entendo alguma coisa ^^
é que era a minha chance, minha oportunidade de aqui mostrar toda a minha erudição :B]

já que o novo conto ainda não tá pronto, vou a mais uma resenha-indicação-encheção-pagação-de-pau:
ontem, também lá na Sala Redenção, vi "Do outro lado" (o título original dá título a esta postagem), co-produção de Alemanha e Turquia, dirigido por Fatih Akin.
eu diria que o filme vale a pena principalmente pela sequência de acontecimentos que, de forma não convencional, vai aproximando os personagens, que já possuem uma ligação estabelecida desde o início do filme. além disso, o contexto em que a trama é criada é muito atual e pertinente: a entrada de países pobres para a União Européia. o filme traz à baila o questionamento a respeito da certeza, da confiança que se tem em tal bloco político e econômico, como se a entrada nele fosse resolver, milagrosamente, diferenças que estão em âmbitos diversos e complementares: política, cultura, poder econômico. muito representativa uma cena, pequena e aparentemente sem importância, em que o advogado turco diz a Lotte: "isso aqui é a Turquia" (como quem diz: aqui não é a Europa, aqui tudo é possível e passível). a personagem Ayten, ativista política e fugitiva em Istambul e Hamburgo, mostra: não seria essa promessa de UE apenas mais uma forma de colonialismo das grandes potências em relação aos pobres? e em troca de quê? de um direito de ser um europeu geográfica e politicamente? é, hoje em dia tem seu valor um passaportezinho! mas, na prática, o que isso muda na vida das pessoas? os miseráveis passam a ter o que comer?
a forma como a trama se resolve também vale todo o filme, não nos subestimando com pieguices água-com-açúcar, com os velhos clichezões.

é uma pena que só tenha mais uma exibição neste ciclo, hoje às 16h. fica a indicação, no entanto. a Nana disse ter encontrado o filme para baixar.


quinta-feira, 5 de março de 2009

PERSÉPOLIS

este post não é propriamente uma crítica. não é uma resenha. é qualquer coisa elogiando o belo filme "Persépolis", ao qual tive o imenso prazer de assitir na última segunda-feira na sala Redenção da UFRGS. esteve em cartaz no guion ano passado, mas, só pra variar um pouquinho, interessei-me muito e acabei não indo.

bom, mas o que falar? na hora h eu ñ sei exatamente o que dizer...
vamos pelo começo: o filme é uma animação, criada a partir dos quadrinhos autobiográficos de Marjane Satrapi, uma iraniana que acaba tendo que sair de seu país em função da revolução islâmica.
é, na parte histórica do oriente médio, sinto-me altamente prejudicada (é uma história de fato complicada, o que me faz não me sentir tão ignorante), só que não é fundamental saber dela para compreender o filme.
o que eu destaco, o que faz do filme algo tão belo, na minha opinião, é a forma como ela desvela a cultura de seu país para nós, ocidentais. a forma como ela, uma criança e depois uma moça, enxerga os costumes locais, como o uso do véu, por exemplo. eu quase cheguei a escrever aqui, mas pensei melhor e não o fiz: ia dizer que ela era uma pessoa comum. na verdade, sua família era altamente politizada e moderna para a época e o país, muito impregnado pela cultura religiosa. mesmo assim, ajuda-nos a repensar aquilo que chega até nós, quando o assunto é oriente médio e as pessoas que lá vivem. a forma como questões de identidade são trazidas também me agradaram muito, tanto aquilo que a menina de oito anos traz, como a futura mulher Marjane.
bom, outro ponto que me pegou em cheio foi a boa dosagem de drama e de humor: há partes dramáticas fortes, que me levaram ao famoso nó na garganta [e às lágrimas, ainda bem!], e as tiradas engraçadas da protagonista, lembrando muito a Mafalda em seu humor e personalidade. Outra personagem que merece destaque é sua avó, com suas lições, seus conselhos e seus jasmins!

é isso, ficou a dica!
[gostei tanto do filme, mas taaanto, que além de encher o saco das pessoas, para que lhe assistam, ontem comprei o livro (= ]

P.S.: a quem possa interessar, colo aqui o link com a programação da sala Redenção da UFRGS. a programação de março e de abril está um escândalo de boa. melhor: nóis não vamo pagá nada!!! entrada franquíssima!!!

P.S. 2: quem quiser ainda ver o filme, não priemos cânico [é, na sala Redenção não eras mais] : a preços beeem modestos, pode-se assisti-lo no SindBancários, até o dia 12/03. confira aqui os dias e os horários.


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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009



leito vazio. ventre vazio. podem pingar gotas de cera, afinal a vela está acesa e eu já nem sinto mais nada que valha a pena. uma dor de queimadura, a essa altura, até que seria bom. a dor do sangramento já me esvaiu por completo, já não sobra espaço, meu corpo amorteceu e caí na imensidão do branco, enfim. [dizem que morrer é branco, posso garantir, no entanto, que é qualquer coisa menos morrer]
acho que era isso o que eu tinha a dizer.




não, não era. sabe, também tenho dificuldades com meias palavras, com metáforas, por isso creio que seja necessário desenhar-te, mas só os fatos, o que sinto não importa um triz. vamos a eles:
lá fora agora há uma tempestade. fato. tempestade de sapos [ou seriam ratos caindo do céu?] e de água e das minhas borboletas roxas que chovem lágrimas de alguém [de quem?]. eu bem que queria que elas viessem chorar aqui dentro, junto comigo, porque tenho certeza de que me consolariam. penso: ainda existe consolação pra mim? algo que fuja ao branco? a propósito, as paredes todas eram verdes, minha túnica era verde e o que eu ouvia também era verde: há alguém que se possa chamar? não. um familiar, um parente? não. o pai do feto? não.
queriam saber: quantos gramas? não sei. quantas carreiras? não sei. quanto foi gasto? não sei. tudo por causa do laudo, nada mudaria o meu quadro [nem tu, caso aparecesses. fato.]. quero que se fodam os laudos, eu realmente não sei, não lembro. me deixa esquecer?
como a senhorita vai pra casa? a senhorita tem casa? vou sozinha, vou a pé [sim, tenho um lar!]. por que não chama o pai do feto [não tens fé?]? não sei do pai do feto, o pai do feto não fala, o pai do feto talvez nem exista, o pai do feto é uma boa pessoa [fato], mas quem sabe tenha havido algum problema. disse a ele que tínhamos um feto, ele disse que era engano: era só um morango. quer o senhor ligar e dizer que, sem querer, eu, Magnólia, vomitei o morango?
[só não se esqueça de dizer que não foi por mal.]

sábado, 21 de fevereiro de 2009

É ritmo de festa

000Carnaval. Na televisão, passava o desfile das escolas de samba locais; na sala, a família reunida, passando por mistos de tédio, intercalados a comentários maldosos sobre a fantasia pobre dos integrantes das alas, a chuva que caía fina e depois forte, colando as penas nos corpos das passistas. “Ai que perigo”, dizia a tia velha na poltrona com seu copo de cerveja em uma mão e o cigarro na outra, “imagina se a moça escorrega na avenida com toda essa chuva?”. Se ela escorregasse, sim, certamente quebraria um tornozelo. E quem se importaria?
000Havia também a pequena que, fantasiada de odalisca de cabelos presos e olhos pintados e repuxados, dançava em frente à tv, empolgadíssima com tudo aquilo. Todos só estavam ali para invejá-la em sua alegria, mesmo com todo aquele calor, com a falta de dinheiro que não os permitiu ir para qualquer buraco no litoral, com a cerveja dando indícios de que acabaria antes de o sono chegar, com os olhos de João Francisco, que exprimiam, em uma imensidão vermelho-inchado, revolta, autopiedade e a letargia dos dementes.
000Mas como querer que ele não chorasse? Adolescentes choram a toda hora, isso é fato. A verdade, embora seja ainda muito cedo para revelá-la, conto-lhes: bom seria o desenvolvimento de alguma técnica que nos permitisse chorar sem que a nossa anatomia nos denunciasse. Não apenas a pequenina irmã não ligava para os seus chororôs de ultimamente, mas toda a família. O problema não era seu soluço convulsivo escondido nos tarvesseiros de seu quarto, “chora que passa”, e sim aparecer em público com as pálbebras inchadas, com a cara amassada, com os olhos vermelhecidos. A família não queria pensar nisso: é carnaval.
000Estava aí então uma grande invenção a ser inventada, uma ideia periclitante, bastava percebê-la e criar alguma espécie de máquina, de dispositivo eletrônico, qualquer coisa que evitasse com que parecêssemos tão perdedores aos olhos olheios. E João Francisco era ótimo para invenções. Ele não materializava nada disso, fazia apenas um uso muito particular, inconscinete digamos assim, de suas descobertas: uma delas foi especialmente útil quando conheceu Soraya, sua namorada – que foi passar o carnaval na praia com a família e deixou-o em casa porque ele não tinha como ir até lá, muito menos se manter lá. Mas não nos adiantemos em pensar que a doce garota foi malvada, ela também nem tinha muita escolha; ela tanto poderia estar na farra, na décima segunda caipirinha, como em casa chorando a ausência do João. Pior do que qualquer uma das duas hipóteses, só o não-saber.
000Com toda a sua experiência dos 17 anos vividos até então, ele já desconfiava levemente de que há algo nas pessoas que nos faz gostar delas, detestá-las, ou simplesmente ser indiferentes. Ele pensava isso por imagens: para ele, havia um grande placar eletrônico em um grande show (afinal, conhecer uma guria é algo tão emocionante como estar no palco de um programa de auditório, mostrando um grande talento aos jurados, fazendo adivinhações a respeito de perguntas estapafúrdias, almejando o prêmio máximo...), cuja platéia, muito participativa e colorida com seus pompons, reagia o tempo todo com ahhhhhhhhhhhhs e ohhhhhhhhhhhhs. No placar, um sinal positivo e outro negativo, ambos sendo preenchidos, muitos gritos de ahhhhhhhhh à movimentação do positivo, outros mais fracos de ohhhhhhh ao negativo.
000Conheceu Soraya em circunstâncias que, de tão triviais, nem serão citadas. Olhou-a e não sabia ainda se queria dela o prêmio máximo (ou não? garotos sempre querem o máximo dos máximos, né?), nem era tão bonita, nem tão simpática: o placar permanecia imóvel, a platéia querendo ficar quieta e o apresentador manipulando toda a situação, dizendo: “vem você pra cá, vai você pra lá”. Lado a lado param, ela usa um decote e tem belos peitos (ahhhhhhhhhhhhh); dá uma caminhadinha e: belo rabão (ahhhhhhhhhhhhhhh); olham-se, ela mostra a ele um belíssimo sorriso (ahhhhhhhhh); ele sem beber qualquer coisa, não tem dinheiro para isso, ela pede uma caipira de vodka, paga e convida-o a desfrutá-la (ahhhhhhhhhhhh). Bom, com tanta sorte, com um placar tão favorável, já era hora de parar o jogo: “Rá rai, má vai pará assim, no duro?”, “Duríssimo!”
000Sua família ao redor da tv, sua irmãzinha ali vampirizada pelos olhos de inveja complacente de tanta alegria com o nada, e só o que ecoava em sua cabeça era um imenso Ohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh. Na sua imaginação, o tal apresentador sempra dava algum prêmio de consolação (“má, rá rai, quem quer dinheiro?”), vinte pilas que fossem... e ele queria dinheiro sim, muito dinheiro para se desenterrar do sofá. Sua cabeça adolescente, aliás, driblando o Ohhhhhhhhh ensurdecedor e a contagem das caipiras (também em forma de placar lasveguiano) de limão, de morango, de kiwi, 13, pensavam em uma forma de fugir pela manhã, de pegar uma carona na free way, roubar uma velhinha, comover a tia velha e conseguir algum (e seu silêncio conivente também). Nada disso aconteceria, óbvio. Voltou à contagem.
000Precisava ir dormir, queria acordar cedo para por em prática suas hipotéticas patetices, só não estava autorizado, no entanto, a sair da sala e deixar de contemplar tal festa. Ninguém sairia dali até que a pequena se cansasse, se entediasse, enfim, descobrisse que a vida é, na maior parte do tempo, uma quarta-feira de cinzas continuada.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

do cinza. ou: da imensa utilidade do hiperlink.

"Caminhar na praia é como repisar cadáveres incinerados. Eu estou vivo. Mas as coisas são como são: meus pés afundam. Meus olhos se fecham contra a minha vontade, e tudo continua simultaneamente cinzento, fragmentado, perturbador. Fragmentos do que um dia [ontem? anteontem? semana passada?] eu tentei conter entre as mãos. Quantas vezes terei de morrer para que eu seja sempre eu?"

[eu queria escrever, não tá dando. apropriei-me dos fragmentos acima, praticamente transformando-os em outro texto. mas, vai, clica aqui e acessa o texto na íntegra, se quer ler algo bom, algo belo... enfim! fica como sugestão.]

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Noturna

Suas vontades venciam,
tinham muito mais
[involuntárias] vontades próprias.
Relaxou, pois: foda-se mode on.

Percebeu que não poderia esquecê-lo,
não sabia desenhar, não queria escrever
e tava tarde pra dançar:
limitou-se a dormir.

Fabricou um passado,
deliberou com seus amigos
[verdades, mentiras]
e, quando seu corpo já doía,
planejou um futuro.

Era tudo sonho?
Não se sabe – a alguém importaria? –
Na rua, só a noite e a lua...
No quarto, o presente
que jamais chegaria.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

cadáver exquisito

senti que meus cigarros acabariam,
[na verdade eu contei, fiz cálculos, percebi que não durariam até que eu resolvesse sentir sono]
por isso saí, na noite fresca, em busca de mais um maço. será que à noite vendem morangos? com cinzas...
[mas eu não estou grávida ainda]
às vezes você pode entender o que eu digo, mas nunca vai sentir. mesmo acreditando que sente.
[será que eu sou uma mulher?]
mesmo que já tenha vivido. você não entenderia, por exemplo, como é irritante ter alguém ao meu lado me mandando parar de fumar, porque esta irritação dói no centro do meu estômago.

[um alguém que diria:
- ah! come só morango e não fuma]

dá licença, agora eu quero o deleite da noite, quero o perigo que ela desperta em mim, afastando-me de você, digo, de estar pensando em você e você
-ah! come só morango e não fuma.

entende? em casa, segura, não tenho maiores atenções, meus móveis são muito imóveis, não gravitam ao meu redor, não se movem para que eu caia, por esse motivo não lhes presto a mínima atenção.
na rua é diferente, os escuros, as sombras, os galhos que se mexem com o vento, os ratos que transitam em um trecho da minha rua,
[não sei quem mais assustados, eu ou eles?]
o frio que sinto,
[sinto-me impelida a pensar em coisas reais, você não é real]
tudo colabora comigo. e é por isso que eu amo os cigarros,
[será que você pode entender o quanto é irritante ter alguém ao meu lado me mandando parar de fumar?]
porque só eles fazem com que eu saia, fazem-me procurar as moedas, pôr a argola do molho de chaves entre meus dedos médio e indicador com atenção,
[a propósito da atenção, meu cinzeiro jogou-se de cima da mesa e eu nem dei por ele]
e sair troteando na rua, centaura eu!

[meu cinzeiro é o único objeto da casa que tem, sim, vontades:
- põe-me à janela, ordena ele]

se eu estivesse grávida, abortá-lo-ia de tanto fumar.
[ou pior: o bebê abortaria os cigarros de mim]
ainda: o desejo de comer guimbas me abortaria e, sendo abortada, eu seria ausência junto com você
[nós não-reais].

ainda estou caminhando e não quero olhar para a lua, porque é o chão o local privilegiado para as sombras: elas dançam, rastejam
[graças à lua].
rastejam os ratos, os cachorros, as árvores, as baratas.
Oh! o que são estas teclas de piano espalhadas pelo caminho e com manchas?
[que rastejam]
posso ouvir algumas delas e as reconheço: são as notas de dó e as notas de lá, oito de cada, a exclamar e interrogar intercaladas, perpassando crescentemente as oito alturas, assim!?!?!?!? dó lá dó lá dó lá
[dor onde?].

as baratas...
[quase piso em uma, enfim piso]
elas são criaturas fortes, que sobrevivem a tudo. e os ratos? como eles não morrem? com este odor tão forte de creolina,
[moro em um bairro cujas ruas, portarias de prédios, tudo lavado diariamente com creolina, o cheiro da decadência]
abafando o cheiro das fezes e da urina depositadas a cada fim de noite por bêbados, mendigos, fanfarrões.
[deus, pra que pensar nisso?]
é muito comum que ratos não morram, nem baratas:
[não morrem mesmo]
tudo é decadência aqui, até meu cinzeiro que se rompeu contra o chão, estava cheio e certamente quis chamar minha atenção fazendo isso
[por quanto tempo misturar-se-ão cacos, cinzas, pontas, cabelos e papeizinhos sobre o meu tapete da sala?].

se eu estivesse grávida, beberia creolina, talvez nascesse um rato com um focinho semelhante ao seu, longos bigodes que eu pentearia todos os dias
[bigodinho lindo da mamãe]
e engomaria com cera dos meus ouvidos humanos
[que ouvem assim !?!?!?!? dó lá dó lá dó lá]

sonhei que abortava um morango certa vez, estava morrendo de cólica. e você, também menstrua? não me lembro da sua TPM.
se as brigas são reais, a raiva, meu choro, minha insônia, a mágoa, por que você não é? você prometeu que ia me engravidar...
quem disse que morangos têm gosto de sangue provavelmente mordeu a língua enquanto os comia. a felicidade tem gosto de sangue e há muito tempo eu não gozo de dor porque você foi.
[e não volta]



como faço pra descrever tal cena? penso que em seu ventre já um pouco protuberante jaz um filho, o meu filho, agora com ela no asfalto. eu disse, repeti:
[come só morango e não fuma]
presta atenção: tudo já caía das suas mãos com queimaduras, de quem não lembra mais o manuseio do fogão, nem sabe mais acender o cigarro,
[só sabe segurá-lo nos gestos triunfantes que acompanham suas tragadas, suspiros de prazer na verdade]
quem se corta com a faca diariamente, sobre as queimaduras: tudo acidentes, falta de atenção.
e agora, pois, era mais um,
[fatal]
ninguém a socorreu e tenho que contemplar tal imagem: entre ratos e baratas que a saboreiam, cacos de vidro de um lindo cinzeiro que se partiu entre as suas pernas. entre os dedos indicador e médio, o molho de chaves, na outra mão, a carteira de cigarros branca respingada de vermelho, a cor da fraternidade. morangos, muitos.

- e eu planejara tudo isso? bela imagem, não? a estética, acima de tudo!!! jamais me mataria por sua causa, morro em forma de acidente!

- só pode ter sido acidente, egocêntrica não se mata. ela queria um filho meu, eu dei e...

- sabe o que eu queria de você?

- ...fui embora. deixei-a. não a quis mais.

- queria mesmo que você viesse até meu cadáver
[muito saboroso, ou não vê como se regozijam ao meu redor as criaturas da noite?]
e comesse os morangos, sei que eu, em pessoa, já não te apeteço:
Come só morango.

[conto escrito com a idéia de fazer um cadáver exquisito. não é exatamente isso, pois esta técnica pressupõe ainda outras coisas... além disso, exquisito, em espanhol, é um falso cognato, criando um jogo de sentido interessante, até porque os dois sentidos (em portugês e em espanhol) cabem.]

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

é tudo blá blá blá

isso mesmo, pura vontade de digitar. talvez de pôr a cabeça pra fora [e seria preciso só me esticar um pouquinho] e gritar POOOOOOOORRA, mas não dá, né.
minha janela permanece aberta, porque ela só se fecha quando chove [e chuva oblíqua]. ultimamente, tá sempre à espera de borboletas roxas [e elas não vêm]. será que se eu fechasse a janela, só um bocadinho, elas viriam, batendo bem de leve com suas asinhas, para que eu abra e elas entrem?
hoje eu tinha acordado bem, dormi pouquíssimo mas acordei bem. sonhei o seguinte:
eu tava numa festa de gala, muuuuuuuito chique, mas eu muito maloqueira. eu não tava nem aí...
bom, havia uns cilindros com ar, sei lá, alguma espécie de gás, com o qual eu enchia a boca e saía flutuando igual a um balão [tipo super mário, quando pegava os balõezinhos. alguém se lembra disso?], mas dando piruetas pelo ar e, o melhor, gritando coisas boas às pessoas. não lembro de conhecer ninguém, exceto meu pai, com quem eu gritava, e a Tamara, com quem eu havia tido uma semi-discussão antes de me encher no cilindro.... daí eu acordei.
seja lá o que quer dizer esse sonho, fez com que ao menos eu me sentisse bem pela manhã.

***
a exemplo da última leva de personagens do Lobo Antunes, pergunto-me: o que tá acontecendo comigo?

[e quem se importa, ora bolas?]

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O dia em que matei minha mãe

kkkknunca gostei de fato de alguma coisa antes de deixar
kkkk(com meia dúzia de pertences)
kkkka casa da minha mãe. nada que eu possa apontar como (tão) terrível, desculpa decepcionar... nada que me tirasse propriamente do sério.
kkkk(na verdade, sim sim, havia uma porção de coisas de que eu tinha asco, que me punham a brigar com cada nervo do meu corpo, tentando afastar a sensação como bom brill na minha coluna vertebral, mas isso aqui é o de menos. simplesmente é muito cedo para começar a mentir).
davamo-nos bem, sempre conversamos sobre tudo, tínhamos uma relação aberta. temos?
kkkk-Então por quê?
sinto desapontar: esta dúvida é destinada a pessoas medianas, a pessoas cuja mediocridade quer sempre as respostas dos porquês, como se elas pudessem existir. é um casal romper e logo surgirem indagações Da Causa.
kkkk-Mas por quê?
na vida não é assim não. por exemplo, a vida sou eu agora, esquálida, deitada na cama,
kkkk- Aonde vamos? [hoje nada vai acontecer]
por que não parava de pensar um só instante? será que alguém conseguia essa façanha? mas e o pensamento, será que um pensamento fútil ainda assim é pensamento? penso então no tempo em que não pensava... ou, sabe-se lá, naquele tempo em que dava importância a inutilidades: havia um tempo em que era preocupante levar um homem para a cama e descobrir que usava cuecas inadequadas, ou que suas meias estavam com elásticos gastos, frouxas nas canelas
kkkk- ah!
manter as unhas sempre feitas, usar calçados limpos, tamancos de couro sem riscos e arranhões, saltos em perfeitas condições. disso dependia a minha autoestima.
kkkk- Hoje nada vai nos acontecer [só estamos aqui onde estamos... ora, é inevitável pra mim, mas me desculpa]
kkkknão sei mais há quanto tempo foi, só sei que nos olhos da minha mãe brilhavam lágrimas que não eram lágrimas. queria ela que eu não me fosse?
kkkk- Tu já tinhas ido há muito...
se sabia que eu não era dali, que as paredes, os móveis, os copos e quadros de mau gosto me sufocavam até a náusea. não sei exatamente quando se deu, o dia, a hora, o segundo exato em que (imagino eu) uma brisa entrou pelos meus ouvidos e anunciou
kkkk- Queres que eu morra?
kkkkhoje, coleciono imagens de morte em minha cabeça, as quais repercutirão pelo telefone. e isto é a vida
kkkk- Hoje não vamos transar
e não é à toa que, de bruços e com o corpo estirado, olho fixo para o aparelho antigo afixado na parede cinza: eu de fato gosto do meu telefone, vi isso em um filme – a protagonista possuía um preto idêntico, com um longo fio que alcançava toda a casa. assim como a mocinha da película, gosto de conversar sentada num canto qualquer da casa, de preferência sobre um piso gelado. mas isso também pertence a outros tempos,
kkkk- Hoje não vamos transar
quando logo em seguida
kkkk(com meia dúzia de pertences)
montei a minha casa, o meu santuário: cada enfeite, cada ângulo calculado, cada efeito da tinta misturada por mim com a intenção de dar a minha nuance, cada almofada... detalhes e mais detalhes.
kkkk- Que horas são?
kkkkque horas seriam? aproximo meu relógio do ouvido e ele, centenário (resgatado sabe-se lá de qual tumba), não emite ruído qualquer, há quanto tempo estaria já parado? quem viria me dizer as horas? a voz de sempre?
kkkk- Tu é que tens de trabalhar amanhã, eu por mim virava a noite a te ouvir falar
kkkka voz de sempre a me atormentar com tantas teorias e blá-blá-blás, é a minha própria voz (ou talvez só o timbre) autoanalizando-me: seria o tédio o responsável pela busca de tantas imagens de dor? ou seria o desejo de desafiar minha tão característica frieza, desestabilizando certos sentimentos e culpas íntimas?
kkkk- Promete que eu vou te ver denovo? [ainda que seja mentira]
testo-me o tempo todo, descortinar meus hematomas íntimos é hoje a mais perfeita forma de catarse, é a vida
kkkk- O silêncio absoluto é o amor
mas e o medo que sinto? ocorre que – e disto tenho uma certeza quase irredutível –, em alguma parte de meu cérebro, em alguma microrrerião, reside um tal ponto mítico, místico e energético capaz de concretizar as minhas fixações mentais: tenho medo, por isso, de matar minha mãe
kkkk- Queres que eu morra, pois?
não que eu queira, não que vá fazê-lo. então por que alguém ligaria, dizendo que minha mãe está morta?
kkkk- A dor maior você sabe: desenterrar a lâmina
kkkkainda não sofro, eu finjo e curto a inquietação aumentando à medida que o tempo passa
kkkk- Que horas são?
a atomosfera periclitante traz um sofrimento de algo que já falta, um sendo não sendo coisa alguma, lágrimas que não são lágrimas
kkkk- Isso nos faz ser mais
kkkkas chamadas de meu telefone
kkkk- Inferno!
agora ecoam dentro da minhaa cabeça, fazem com que as paredes, todo este cubículo de apartamento vibre. fecho meus olhos.... isso é real? não, nem existe mais telefone, joguei-o fora na semana passada, como pude esquecer-me disso?
kkkk- Existimos de fato algum dia?
fecho os olhos e não te vejo mais, não vejo a minha mãe também. o telefone geme agora igual a ti, não atendo, aperto a pálpebra, fico imóvel até quando não me peçam que eu prometa coisa alguma
kkkk- Prometo [e eu podia prometer-te apenas ausências]
kkkkvolto (será?) a consciência? ao menos tudo parou de vibrar, resisti à tentação de atender seja quem for, porque eu não quero mais ver ninguém,
kkkk- Queres que eu morra?
não!
kkkk- Ainda não.
eu não quero meus sentidos perturbados por timbres, sensações, olhares (e os mais tímidos perturbam, levaram-me à sucumbir, afinal eu não queria nada, era só um café, uma caminhada, uma cerveja, um cd ouvido no meu chão gelado), não quero teus toques
kkkk- Hoje não vamos transar
e se tudo isso não passasse de paranóia? por que não deixar com que me salvem disso tudo?
kkkk(porque, é claro, não tenho salvação. toda a minha vida deve ser, com certeza, uma paranóia de alguém, um folhetim intimista escrito por uma barata. e o que esperar de uma barata?)
kkkka grande verdade é que conquistei a solidão. não deve ser à toa afinal que escolhi tal trabalho, sempre dentro de casa escrevendo, escrevendo, escrevendo... ou traduzindo, vez por outra. por isso também não tenho telefone celular, quando vou à rua, faço-o por extrema necessidade, postar qualquer coisa no correio, do outro lado da rua, ir ao calçadão sentir a brisa. quaisquer telefonemas podem esperar.
kkkkentão me entendes? o café (que nunca tomamos, enfim), as caminhadas, os olhares, a minha mão que te tocava sem querer (querendo, é claro), a minha ida à tua casa, isso até pode ser uma desconquista
kkkk- Não foi por mal
kkkkjuro, tenta entender-me: fui criada para ser igual a todo o resto da humanidade, claro, igual aos bem-sucedios, aos bem vestidos, aos honestos e aos sinceros. eu, e o meu tipo biológico (infelizmente) sempre favoreceu, deveria seguir aquele modelo sensual de fêmea em busca do parceiro ideal, isto é, do bom-marido
kkkk(isto é: rapaz de família, extrovertido, respeitador e do tipo que banca uma mulher)
e a família toda, depois de todos os filhos casados e enfilharados, se reuniria aos finais de semana, encharcando-se de cerveja, entupindo-se de carnes gordas e maioneses caseiras. no rádio, qualquer coisa cafona animando.
kkkkque dia foi que passei a odiar minha mãe? podes ajudar-me, quem sabe, nesta questão crucial?
kkkk(ainda não é consenso o fato de odiá-la)
kkkkah, o horror que senti quando descobri o quão vil a minha mãe podia ser
kkkk-Mãe!
nada diferente do resto da humanidade, é claro, um dia a verdade mais profunda das coisas vem à tona.
kkkk- Ai, minha filha, que decepção! Imunda!
sim, ela já me disse,
kkkk- Por que me decepcionas assim, a mim que te criei com todo o meu amor?
kkkk[à minha imagem e semelhança]
mas eu digo que a grande e cabal diferença é que ela já me teve adulta, crescida o bastante para já ter descoberto que as pessoas são imperfeitas, que me tornaria também um ser (à sua imagem e semelhança) ridiculamente sensual e vulnerável durante a adolescência, uma adulta emocionalmente frágil, apta a me render e a me vender por muito pouco,
kkkk- Qual é a surpresa? Quem não sabe disso?
kkkke eu não sabia de absolutamente nada quando a ouvi em situações obscenas, e nem era com o meu pai... isso me causou transtornos, porque eu chamei e minha mãe
kkkk- Mãe!
e ela não veio. como pode ela não me ter ouvido? por que ela me ouviu e não veio?
kkkksuas certezas, segurança, fluidez? ou tudo isso era meu? que idade tinha eu?
kkkk- Mãe, que idade tinha eu?
eu nem conhecia a palavra fluidez... tudo mudou. eu já não queria deitar na cama com ela, sentia nojo de estar sobre os mesmos lençóis onde, na noite anterior, praticara atos tão imorais
kkkk- Hoje não vamos transar
kkkka partir de então, eu não dormia às noites. não sabia mais o que preferia: seu namorado ali com ela, engrossando o coro que não me deixava dormir, ou só eu e ela, o que me deixava de vigília por pura precaução
kkkk- Promete, mãe?
morria de medo de que, na ausência dele, ela fosse deitar com outros quaisquer. comecei a cuidar seus movimentos, a direção para onde olhavam os seus olhos: tudo se movimentava em direção a homens, os lábios mudavam movimentos. uma pergunta só não queria calar: eu teria coragem de surpreendê-la em um flagrante real? de repreendê-la?
kkkk- Queres que eu morra?
kkkktudo um dia esteve na sua ordem normal. aqueles mesmos lençóis foram disputados por mim e meus irmãos, todos queríamos dormir com a mãe na ausência do pai. acaso há algo que se iguale ao cheiro da pele materna? nada poderia ser melhor do que acordar de manhã e imediatamente passar ao outro lado da cama, enfiando a cabeça no travesseiro que fora usado pela mãe a noite inteira. hoje tudo não passa de podridão
kkkk- Nunca te prometi nada
kkkkmas sempre sugeriu! ou acaso não há trocas? um agradinho aqui, um desaforo acolá
kkkk- Eu que te criei, tás com o rei na barriga?
em pleno domingo
kkkk(e como eu odeio o domingo, e a segunda, e a quarta...)
kkkk- Me aceita!
porque eu era diferente, porque eu não sou igual aos outros, porque
kkkk(e por quê, meu deus, eu nunca fiz isto)
sim, eu confesso, eu nunca te disse o quanto já me feriste, por isso
kkkk- Hoje não vamos transar
meu telefone toca. não, tu não vais aceitar, tu vais rir e dizer-me
kkkk- Isso é normal? Hahahahahahahahaha
e não é
kkkk- Acaso és ainda virgem?
kkkk(e todo mundo sabe que não: Hahahahahaha)
por isso mesmo, peço-te a ti e a todo mundo
kkkk- Desculpa, não levem a mal
ouço o toque
kkkk- Triiiiiiiim, triiiiiim
e atendo, pois, à segunda chamada, ao telefone.