quarta-feira, 30 de junho de 2010

DIÁRIO DE CÁSSIO SOUZA ANTUNES

{fragmentos}

Conheci aquela doida, aquela que nem deve desconfiar de que, sim, eu escrevo um diário. Não teria por que me envergonhar disso, esconder dela algo que (tenho quase certeza) também faz. Mas escondo porque são coisas íntimas, porque ela me pediria pra ler, vasculharia as minhas coisas até encontrá-lo caso eu admitisse que escrevo... E, pensando bem, não sei o que mais me incomodaria nisso tudo: se ela se descobrisse nesse embrenhado de sensações, sentimentos (percebo que até agora só falei dela aqui) ou se é porque sei que ela adoraria ler as minhas intimidades só pelo prazer de se descobrir aqui, pulando certas partes menos interessantes. Seria uma oportunidade e tanto de ela saber o que eu sinto por ela - como se não bastasse ela me perguntar isso a todo momento...
{...}
Conheci aquela com quem moraria, aquela a quem desde o primeiro momento eu chamaria de doida - muito mais pelas esquisitices do que por qualquer outra coisa. Era aniversário de uma simples conhecida, em cujo apartamento fomos parar meio que por coincidência, já que ambos foram a convite de outros amigos da aniversariante. Ela não era bonita, seus cabelos não possuíam sequer brilho, trajava um vestido anacrônico, desbotado, do qual faltava um último botão (sem falar que o resto dos botões - era um vestido todo abotoado na frente - aparentavam estar meio descascados). Havia, porém, um leve resquício de vaidade naquela mulher: suas unhas brilhavam ao esmalte recém colocado, escarlate. Alguma coisa me doeu por dentro. Ela não me sorriu, ainda que tenhamos conversado. Apenas fumava seu cigarro à janela, bebia goles curtos de Martini quando lhe ofereciam (depois é que vim a descobrir que detesta, mas era o que tinha), e não sei se senti pena, de onde brotou um enorme desejo de deitá-la em meus braços e roçar nela vagarosamente meu membro já enrijecido dentro das calças, ou se foi o contrário. Ela também não conhecia ninguém ali, e ao contrário de mim, todos lhe davam atenção. Ela estava à vontade e tive a nítida impressão de que continuaria assim se soubesse o que se passava comigo enquanto falávamos. Fui sentindo raiva daquele vestido que devia estar encobrindo seus seios soltos e sua calcinha cor-de-vinho, quase combinando com o esmalte; senti raiva por ela poder estar com um jeans, qualquer roupa normal que não fizesse saltar aos olhos tanta estranheza.
{...}
Depois de ter acordado, ainda no apartamento onde tudo acontecia, olhei em volta pra ver se ainda seria possível encontrá-la... Quem sabe tentar me aproximar mais, chegar junto (eu não sabia o que estava querendo, tudo parecia muito mais um impulso que me empurrava ao desconhecido do que um desejo real por uma mulher que não tinha atributos suficientes que despertassem tanto tesão), deixar meu telefone com pretexto de fornecer a ela o endereço onde conseguiria as melhores marcas de chás importados a preços acessíveis (o detalhe é que eu não tinha a menor ideia da existência desse lugar, apenas ouvi de longe que ela era uma apreciadora de tão sem graça bebida)... Enquanto pensava nisso tudo, precisava mijar, lavar o rosto, recuperar as cores. Eis que, ao passar pela sala, aninhada estava ela no sofá, nos braços de outra menina. Lésbica filha da puta. Nem cheguei até o banheiro: saí enquanto ainda era noite escura, enquanto ainda dava tempo de esconder meu rosto, cobrir as nádegas e mijar à luz da lua.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Compilei o diário da Dóris. Até que.... gostei!
(Mas ele ainda deve continuar, até quando conseguirmos manter a sintonia. Não, ao contrário do que se poderia pensar, a Dóris não sou eu. E ainda bem.)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

X

quem resta sou eu: resisto ao passar dos anos, sobrevivendo a mim mesma como um fósforo frio... como uma sacola plástica que insiste em rolar pelas ruas durante as madrugadas escuras, perturbando os sonos sensíveis daqueles que temem as almas surgidas das cinzas... os cadáveres que surgem dos seus sonhos infames, sedentos por um último pulsar de vida que os anime, nem que seja por um lapso: eles não têm nada a perder. 

sim, faz frio aqui na minha casa - a casa aquela das paredes nuas -, mesmo fechadas as janelas de vitrais coloridos, de onde escolho, escondida, espiar meu mundo de agora. mas coloquei, de fora, frente ao sol, margaridas brancas de miolos fortes, moles, amarelo-velho: a cor do meu maior mistério, da covardia mais madura que nasceu em mim. não quero que sejam como eu, pétalas plásticas, miolos mofados, metades esturricadas dos adeuses tantas vezes dados.

o que faço agora? nada de mais, copio letras de músicas cretinas pra treinar caligrafia ou escrevo dóris dóris dóris dóris dóris dóris dezenove vezes no papel, que já acabou, já não me serve mais (pra que tanto acúmulo, meu deus? postais, retratos, cartas, cadernos, sentimentos, cartões, caixas de bom-bons... ao menos são recicláveis!), por isso escrevo agora na pele, porque me dei conta de que também posso ser matéria orgânica, pura, a cada poro aberto e sangrado pelas agulhas. andei regredindo, inclusive. andei escrevendo sobre a pintura das paredes: não queria mais vê-las nuas. pintei-as na espera, escolhi a cor mais púrpura que, coitada, sobrevive hoje desmaiada, quase crua.

terça-feira, 8 de junho de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

IX


Paguei o preço da espera lenta, dando-te meu silêncio, minha única razão. Assisti ao teatro de humanos, tomei cuidado com as sombras que a lua projetava pelos muros, pelo chão. E tudo, na verdade, te devolvia na imagem caleidoscópica dos espelhos onde refletiam cigarros já queimados até o filtro, acenando a solidão que colhi. 
Amadureci. Deixei que os ratos comessem do açúcar o amargo da minha razão, e o doce restante se renovava, do nada, a passos largos: era chegada a hora de me despedir da vida antiga, preparar tudo ao meu redor, jogar fora um passado roto, encaixotar discos, diários, livros e lembranças dos dias contigo vividos. Precisava sobretudo me preparar pra ti. Quanto isso levaria? Quantos anos eu tinha então?
Alcancei a plenitude antes até de tê-la vivido. Cartelas de cores de tinta pras paredes ainda nuas, sofá-cama, prendedores, box duplo, armários embutidos, adesivos coloridos, toalhas rendadas... O amor tem destas coisas: te enxergava em cada fio de eletricidade, em cada lâmpada apagada do castelo que desenhava pra nós.
Senti, no durante, tamanha plenitude que não pude perceber o que já estava distante - eu-não-pensava-em-nada.  Meus dedos roçavam os mesmos velhos objetos de antes, apenas distintamente dispostos... e cada toque servia pra devolver-me sensações sentidas: me fizeste lembrar que sou alma que é prendida num corpo. Corpo sensível à tua mera existência. Corpo que respira em sonho teu sono. Corpo cujo doce reservei-te. A cada caixa que abria, saíam retratos teus, molduras minhas feito corpo a te envolver.
Esperava por ti e fui te buscar. Faltava-nos ainda um último retoque: pendurar na parede o relógio, ajustar seus ponteiros, porque nele

o tempo, leve,
leva embora
relógios de cera
já sem hora.

esboroada espera
embora seja
agora,
senhora,
a hora
não demora:

a semana
já sumiu
resta apenas
nós
as nuvens
e a aurora.

...