quarta-feira, 29 de outubro de 2008

trauma

Acordei depois do acidente certo de que a partir de então meu crânio já não seria o mesmo. Cada átomo da minha pele, do tecido todo que a compõe, estava desintegrado. Meus ossos também já eram uma massa mole entre músculos e veias. Decidi dormir, para ver se definitivamente conseguia morrer.

Era traumatismo craniano, mazela que pode ser provocada por aqueles que querem dormir depois de uma batida tão forte contra qualquer superfície dura. Morri, de fato, dessa forma. Feliz, assisti sentado e quieto ao meu próprio velório, pensando em como é boa a sensação de vitória em relação a um objetivo alcançado. Como era fácil, pois, morrer.

Meu caixão estava fechado, e te ouvi explicando o porquê disso à Rafaela... seu rostinho claro e vivo foi o único elemento capaz de me trazer tristeza. Logo desviei meu olhar, eu agora não precisava sentir mais, não precisava negar, porque tudo era tão simples: vocês já não faziam parte de mim. E tudo estava tão igual, eu ainda era possuidor de uma massa corpórea, ninguém dava pela minha presença. Estranho. Aspirei longamente o ar, fazendo com que minha pele se rompesse em pleno meio da testa: o sangue começou a jorrar exageradamente, a pele mole que envolve meu crânio parece ter se desprendido, passei a vê-la diante dos meus olhos: meu universo passou a ser, por alguns instantes, de um cego que enxergava em um tom de bege-claro, e eu queria era enxergar tudo ali... já eram vinte pontos desfeitos ao redor da minha cabeça.

Toda aquela sensação primeira de liberdade deu lugar à de horror – meu crânio desfazia-se, enquanto todos me olhavam sem entender toda a cena; tu, escondendo em teu peito o rosto da nossa pequena, para que ela não me visse, meu silêncio, meu terror, minha vergonha, enfim. Não é todo dia que temos nossos próprios miolos espalhados ao chão, à mostra. Repentinamente, em meio a ossos, massa cinzenta, sangue, pensamentos meus materializavam-se: todos, perplexos, desvendavam o meu suicídio, a minha paz, o meu repúdio a esta vida indigna – porque ali no recinto estavam até inimigos meus, pessoas que, sem o mínimo pudor, ainda se deram ao trabalho de incharem suas pálpebras chorando diante do meu caixão. Imediatamente, todos me xingavam, amigos, parentes, inimigos, tu, Rafaela... fiquei só no banco onde estava, já sem nenhum vestígio de crânio.

Imobilizado, acordei novamente na cama de hospital, onde estava tranquilo o suficiente para que não me percebessem desperto. Foi assim que ouvi: apesar de imensamente lúcido, sem prejuízo das minhas faculdades mentais – o que já era um milagre -, eu seria um eterno tetraplégico. Mais uma vez, decidi pegar no sono. Quanto tempo mais eu conseguiria morrer?

domingo, 12 de outubro de 2008

lâmina

Já ouvi por aí que a vida é muito louca, várias vezes. Mas isso dizem aqueles excessivamente normais, a quem isso que se chama vida [fortuna?] causa estranhamento. A nossa vida até que era pacata, porque não éramos normais.

Um dia, tudo vai de um jeito, temos, um ao outro, a nós: e isso basta. Dizias que eu enlouquecera, mas digo-te que tal bênção ainda na minha porta não bateu. Declarei-me, sim, culpado do teu infortúnio, bem o deves saber agora. Agora, mais louco ainda me deves enxergar. Mas morte é morte: morte tua, morte minha também. Afinal, diga-me, não achas que eu merecia esta tão funesta participação, contribuindo para a verossimilhança [e, por que não, coerência?] no grand finale da tua tragédia pessoal?

Fico pensando que, de algum lugar, agora me olhas e fazes aquele teu meio sorriso [que equivaleria, em uma pessoa efusiva, a uma sorriso com todos os dentes à mostra]... bobagem: mais uma vez, estou querendo co-protagonizar algo contigo, fantasiando o teu consentimento. Meus pensamentos, contudo, insistem mais um pouco: não, não fui eu quem, nos pulsos, atravessou-te a navalha, mas sinto que esse talvez fosse o meu dever, a minha permanente vontade, o meu desejo mais interior: vivi até hoje só para isso e, ainda assim, fracassei, não fui eu a te matar. Para salvar-me, e salvar minha possibilidade de existência nesse mundo [porque creio em dor moral], confessei a tua morte.

E era preciso continuar matando. Entrei no teu apartamento, todo fechado... Tudo era tão úmido ali: escuridão em mim! Era o ar, seria a minha respiração espessa? Era tão proibido e impróprio tudo isso... era o cheiro sufocantemente jasmim. Quem o convidou, por acaso, que entrasse? A perfumar dessa casa os espaços vazios? Talvez fosse aquele teu perfume do oriente, teu sangue conservado numa poça em temperos e pétalas brancas.

Sentei-me, enfim. Passaste, igual àqueles idos quinze anos, correndo a me chamar aos gritos [Vem, vem, vem], lembras? De preto, e tu sempre mais que eu, íamos deitar-nos, no quintal anormal que então tínhamos na fazenda, sobre mortos que jaziam sabe-se lá desde quando: até quando? Com flores coloridas eu te cobria, flores grandes, pequenas, naturais, de tecido, de plástico. Tu a dizer-me: “Morro e me enterras assim, de preto, mas só aceito flores naturais: quero que apodreçam comigo”. Ai, que medo, eu pensava... mas jamais poderias desconfiar! Arrependo-me só de não te ter afirmado que quem ia antes era eu, mesmo adivinhando, desde a primeira vez que te vi, que tudo seria exatamente assim. Conforto-me, no entanto: quem poderia contrariar-te? A quem não convencias com teu simples respirar? Além disso, não me deixes esquecer, fracassei...

A paisagem era tu no teu apartamento, em que na mesma tarde adentrei. Só restava, dissonante, o quadro aquele do verde úmido [lembras?] onde às vezes habitávamos. Sempre imaginávamos, enquanto o clima aqui na cidade era frio, inóspito, nublado, molhado [o mais lindo dos climas], nossa vida naquela tela, fugíamos para um outro tempo da História também. E até que tínhamos talento na arte de nos imaginar: deitada sobre o tapete púrpura, teus pezinhos mal chegavam ao seu final... no meu colo, dava-te uvas ácidas à boca, observando, certeiramente, teus cabelos cor de mel, cujos cachos caiam sobre teus seios, sem, contudo, ultrapassá-los. O sol em ti chegava a refletir, no teu traje branco de rendas, na tua pele alva, rosada pelo mesmo sol. Era a típica tarde que, assim inventávamos, vadia. Em tais circunstâncias, que outro nome dar-te-íamos, pois, que não Luísa? Esse nós que inventávamos, em outro século, em outro lugar, a mim era o mais fácil de suportar. Naquela tarde em teu apartamento, doeu-me nunca teres levado a sério a nossa mais bela criação juntos, porque sempre rias e nos ridicularizava: “Imagina, meu caro, eu jamais usaria todo esse branco nojento, jamais teria os cabelos dessa cor desprovida de personalidade, ainda que assim tivesse nascido...”.

Paradoxalmente, tenho minha vida e já não a tenho, vivo agora no mais completo estado de zumbi, também por total falta de coragem: bastaria mais uma lâmina. Hoje fui a um psiquiatra, sabes, que me disse o que tomei como verdade imediatamente: eu preciso disso tudo, da prisão, da cela, do desprezo de todos para aplacar esta culpa que exala do meu hálito, por isso não me mato também. Culpa de ter nascido e não te ter matado, porque essa sim era a nossa criação mais verossímil, a que mais a ti parecia bela. Como sempre, tu, mesmo morta, ditando o nosso verossímil. Invadi a nossa casa para poder pôr a prova essa sede de matar, e matei aquela Luísa do quadro da parede, o nosso retrato mais mentiroso de todos os que inventamos... Por que ainda querê-la numa parede que nem era minha? Por não ser tua... nem minha mais? Luísa não era eu. Não era tu. Não era a lâmina que pelos teus punhos entrou. Não era o teu pullover preto, teus cabelos pretos. Muito menos as flores que dentro de ti embalsamei. Mas agora o serviço está finalizado, ao menos a ela consegui matar.