quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Epifanias

- Sonhei contigo, mas não lembro bem... sei que a gente se beijava e ficava junto para sempre.


- Hm... é estranho, eu sonho isso toda hora também. Na verdade não é estranho, é muito verossímil dentro desse universo surreal que construímos [que não se dilui nunca]. Já dizia meu pai: “Até uma barra de ferro, dentro de um copo d’água, se dilui”.


- Eu só te contei um sonho que eu tive: da próxima vez não conto não. Achei que ia te fazer um bem e ainda ouço que o meu sonho é previsível. O que é que eu deveria sonhar então?


O assunto ficou levemente suspenso, porque nem restava o que dizer de diferente, só esse tipo de diálogo improdutivo e sem futuro. Nada, aliás, tinha mais qualquer futuro.

Alguém andou escrevendo:
Ás vezes eu sinto luto
eu sinto nojo das gentes
eu vou vomitar meu presente


e nada mais expressaria tão bem o que Maria Luísa andava sentindo por esses dias: que coisa é essa de imaginar uma única felicidade possível, numa espécie de Pasárgada?


- Pensei em te dizer, sabe, que meu “paraíso” é o teu beijo, mas achei cafona, e muito desnecessário.


Para Maria Luísa, sim, muita coisa, ao longo da sua nem tão demorada existência, se tornara desnecessária. Até viver, em certas épocas. Preguiça de sair, de comer, de abrir os olhos. Hoje, contudo, algo aconteceu!


- Desnecessário? Nunca é, pode acreditar! Eu adoro! Afinal, o que é que tá acontecendo?


- Hoje tive uma epifania!!!


Pra começar, Maria Luísa adora essa palavra: algumas pessoas dizem que tiveram um click. Ela não. Sua primeira epifania foi tida com a repetição em voz alta de seu nome enésimas vezes, até que descobriu que pode existir uma certa graça em ter um nome duplo, de forma que, desde então: “Como é o teu nome?”, “Maria Luísa!”. E olha que isso nem foi há tanto tempo.


- O que é uma epifania?


- Hmmm, quer mesmo que eu explique, Paulo Fernando? Que coisa ter que ficar explicando tudo!


Paulo Fernando foi a causa dessa sua primeira epifania: já não bastava Maria Luísa se chamar assim, adquirindo muitas alcunhas distintas? Ora Maria [Mari], ora Luísa [Lu], ora Maria Luísa. Conheceu Paulo Fernando e logo se obrigou a achar isso gracioso! Ficou sendo Paulo Fernando pra cá, pra lá, a todo tempo... tanto que ele se convenceu de que, sim, seu nome só podia ser Paulo Fernando: nem mais, nem menos.


- Que que te custa?


- Tá, assim ó, hoje eu decidi várias coisas que eu devo fazer, porque assim vou ser uma pessoa mais feliz.


- Então epifania tem a ver com felicidade? Por exemplo, eu sei, desde sempre, que se os meus números forem sorteados na mega sena eu vou ser feliz pra toda a minha vida. Simples assim?


Simples. Maria Luísa sempre soube de tudo: ela sabia, aliás, que todos os seus planos de viagens poderiam ser meras rotas de fuga. Nem era uma questão de não suportar a realidade, mas de questionar sua própria capacidade para alcançar o mundo de coisas com que um dia sonhou. Um dia já foi pura epifania o dar-se conta de que os sonhos são mutantes, de que alimentava sonhos já descabidos e de que o caminho de hoje, portanto, não valia mais a pena. E outra, mais outra, e outra epifania, todas vão chegando para anular todas as outras que as precedem.


- Até quando, Paulo Fernando?


- Quê? Isso que eu disse é ou não é uma epifania?


- Não, Paulo Fernando, não é. Agora me diz, até quando?


Até quando? Esse era o seu maior medo. Se Maria Luísa pudesse, bem que desejaria anular a seqüência de epifanias: queria estacionar em uma só, definitiva e permanente. Afinal, até quando durariam as suas resoluções? Até quando as coisas permaneceriam com o status de descoberta? Quando é que o novo assume as feições do velho? Quando que a metamorfose ambulante se transforma em inconstância?


- O quê?


- Paulo Fernando, eu não te amo mais.


Mas Maria Luísa o amava, e isso descobriu na próxima epifania que teve.


- Eu te amo, Paulo Fernando!


- Maria Luísa, vai à merda.


terça-feira, 2 de setembro de 2008

O que ainda não vi

Queria sentir

os átomos quentes

a massa de sangue

o gosto de soro


Sua afinação,

seu timbre, apnéia,

estertor, entregue

completo e pleno


Corpo evanescente

exala alegria

Humor e essência

de verdade crua


Verdade instintiva

de alguém que permite

ser na condição

de humano, animal


Pós- realizado

consumado volta

a doçura própria

nobre fidalguia


com seu corpo mole

entregue se deita

em mim tão macia

ri, fecha os olhos


Esquece o cigarro

dorme sua morte

enquanto observo

durante, depois



[alguém especial escreveu pra mim.... e depois dizem que eu me acho! ashashash]