sábado, 11 de julho de 2009

A Coisa Insignificante

Maria Alice sentou-se na pequena mesa do Café Suprème e, enquanto esperava que a agência bancária do outro lado da rua abrisse, pediu um expresso duplo. "Poderia pensar na vida", pensou ela, "mas não tenho nada de interessante pra pensar". Abriu a pasta turma 32 e pôs-se a corrigir provas. Sabe como é, sempre se ganha um tempo, afinal esperar é o inferno. Apoiou fortemente os óculos sobre o nariz grosso, seus grossos dedos de solteirona sem anéis seguraram então com autoridade a caneta bic vermelha. Antes, ainda, sorveu um longo gole de café.

As moléculas orgânicas são substâncias químicas que...

Era interessante como os galhos das árvores se balançavam ao sopro daquele vento outonal. A árvore era um objeto de todo interessante: de que espécie seria? com aquele tronco marrom que não era marrom, talvez um cinza de árvore morta... cinza não, porque marrom e cinza evidentemente não têm nada a ver. Bege, isso, bege escuro. As folhas pequenas, verde-opaco. Haveria frutos? Na certa, seriam pequenos, delicados, feito filhotes prematuros de cão, num rosa desbotado, quase morto, rosa-antigo apagado com a borracha.

... que contêm na sua estrutura carbono e hidrogênio, e muitas vezes com oxigênio, nitrogênio...

Maria Alice sentiu ternura por aquela árvore, tão insignificante no meio da avenida. Não era esbelta, alta, pomposa, viva, luminosa... alguém mais haveria de sentar àquela mesa, pondo-se a reparar naquilo que não oferece qualquer possibilidade de catástrofes, ofuscamentos? Algo que fosse tão belo que um motorista, ao examinar o esplendor da refração dos raios solares nas suas flores e seus verdes vivos, batesse o carro ou atropelasse um pedestre. Maria Alice sequer pensava nas flores que primaveris desabrochariam daqueles galhos. Angustiou-se por ainda não ter podido usar sua caneta, que embora simples, representava o maior instrumento de poder de que dispunha nas últimas décadas. Para atrapalhar, aquela árvore. Aquela árvore ali, parada. Sorveu o último gole da taça, pensando que pensar sobre árvores era uma saída digna: melhor que a sua vida, melhor que corrigir provas sem erros.

... enxofre, fósforo, boro, halogênios e outros.

9:30. Quero outro café. E se eu pedisse uma fatia de torta? [em voz grave] Moça, eu quero um pedaço de alguma torta com os frutos daquela árvore ali... eu não sei qual é sua espécie, mas tu não vê os frutos, não me diz tu que frutos seriam aqueles? E que sabor, não sei, tu acha que eles têm?... pela cor, ácido, ácido... pode ser uma torta de morango. Tem aí? E mais um expresso duplo, por favor.

Maria Alice não pediu. Ela nunca pedia nada. Pensou - e pensou além: certo que estaria louca, porque a árvore não tinha frutos. Porque ela não poderia jamais pedir qualquer torta, porque diabéticos não pedem torta; eles comem, no máximo, morangos! Porque sentia suas banhas caírem pelo cós das calças; há tempos tinha que fazer uma dieta: era a realidade mais evidente. Olhou para a árvore: "tão bonita, tão pequena". Mas não desconfie jamais do poder de uma coisa insignificante: a catástrofe estava feita! O esplendor é sempre o mais raro. Quantas pessoas realmente especiais a gente conhece ao longo de uma vida? Quantos dias especiais contém a vida de alguém? Quantos gênios existem na face da Terra? Quem é realmente bonito o tempo todo? Tudo exceção! E nem por isso as desgraças deixam de acontecer.

Aquele dia era comum na vida de Maria Alice. Era comum estar sempre esperando por algo. Comum mesmo era desde pequena estar privada dos doces, ter dores nas articulações grossas, banhas que sempre extrapolavam as suas roupas. Não sei se é bem por isto, e ninguém nunca sabe ao certo [nem Maria Alice saberia], o fato é que ela saiu correndo com a caneta e sua pasta, atravessou a avenida e trepou na árvore: dali continuou a corrigir as suas provas, porque aquela árvore era ela.

Para os químicos antigos, as substâncias orgânicas eram provenientes de fontes animais ou vegetais...

1 pitacos:

cintilante disse...

inspiradíssima, hein?!

adorei.