domingo, 2 de maio de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

VI

... El tiempo pasó
fuimos ella y yo
dos en la ciudad.
Pasó, pasó
pasó nuestro cuarto de hora
pasó, pasó
pero aún sabíamos reír...

Tocava a canção de Fito e era domingo. Deixei-me embalar, dancei dentro de casa, enquanto o dia desperdiçava sua luz, de manhã. Um copo de chá, ofertando a meu estômago regurgitante e a tanta luz que se sobrepunha às venezianas, às cortinas, às portas trancadas, às paredes espessas... tomei meus longos goles, depressa, até verificar seu fim.
Sentei no chão, decidida, abriria aquele meu velho baú de vime, espalharia pelo chão tantos papéis, cartas, postais, embalagens que guardei. Ali, outrora fui jogando tudo, dízimos de lembranças de qualquer parte, de qualquer espécie. E achei que era a hora de separá-las, uma por uma. Iria separá-las em envelopes, catalogá-las. Não sei se disse a alguém, ou exatamente a quem falei, dessa minha mania de separação. É como se precisasse de tudo muito bem arrumado, e assim poderia compreender tudo, passado o primeiro impulso, aqueles momentos de intensidade que tornam as coisas nebulosas. Era enfim chegada a hora de deitar fora o que já não fazia mais sentido (e tudo que tava ali eram recortes paralelos de momentos, pequenos momentos em que fui feliz!).
Não concluí a tarefa... sou covarde, não tive como pensar sobre o que eu não entendia, classificar sem critérios e parâmetros. Não os encontro em parte alguma, em pessoa alguma. E tudo faz e não faz sentido, tudo ainda se distorce, se evapora ao acender do meu cigarro. Sinto como se estivesse a decifrar meus sonhos, como aquele em que estava queimando em praça pública. Eu sorria para alguém enquanto as chamas me invadiam os seios, queimavam os meus cabelos, e eu refletia labaredas pelos olhos e dentes, para que a pessoa, atrás de um chafariz, me enxergasse. Meus dentes não se desfizeram, meus olhos sobreviveram marcados sobre a rocha que por séculos ficou ali parada, servindo de encosto para sacolas, de banco a quem quisesse descansar, ou a quem esperava um amor que se atrasa, ou, ainda ,espera a solução de um problema, a dissolução de uma dúvida atroz. Sobrevivi como uma mancha perolada na pedra.
Sinto-me a decifrar minha vida como quem se esforça para lembrar de um sonho bom. Sinto-me amputada de razão, julgamento, sinto que perco algum detalhe importante, ou algo banal. Acho que tudo o que sou é memória e lembrança, e talvez esteja certo quem disse que o essecial é invisível aos olhos. Mas parece que sempre me escapa o essencial, mesmo com tantas relíquias que não me canso de mirar, carícias em minhas retinas (onde vou parar?!!!)...  E veja só o que encontrei, aquele bilhete daquela despedida:

Todo lo que vi está demás
Las luces siempre encienden en el alma
Y cuando me pierdo en la ciudad
Vos ya sabes comprender
Que es solo un rato no más
Tendría que llorar
O salir a matar
Te vi te vi te vi
Yo no buscaba a nadie y te vi
Te vi fumabas unos chinos en madrid
Hay cosas que te ayudan a vivir
No hacias otra cosa que escribir
Yo simplemente te vi
Me fui
Me voy de ves en cuando
A algun lugar
Ya se no te hace gracia este país
Tenias un vestido y un amor
Yo simplemente te vi
Só pude fechar tudo. Era Fito, uma feliz coincidência, talvez. Levantei-me e segui com todo o meu corpo os embalos de uma sinfonia que só eu ouço, dançando sobre todas as lembranças espalhadas pelo chão do apartamento, entre fumaças e raios que escapavam dos buracos que já nem me preocupava em tapar.

4 pitacos:

... disse...

"Às vezes me sinto submersa em alguma água profunda, tentando correr, mas andando lentamente. Às vezes me sinto tentando interpretar minha própria vida como se fosse o sonho da noite passada...."

Lindo, lindo de doer.

Adorei o comentário.
Sou o sandro, bróder da Cíntia, maluco, solista, jazzista de banheiro, artista, arteiro, poema, cinzeiro, capim, enfim, coração sem jeito, certeiro.

Ode à Baco.

SLRF

Anônimo disse...

que belo amiga!
=}

Edna Hornes disse...

Amei. O fim, então...

cintilante disse...

Ah, o Fito e seu poder de inspirar nossas melodias não cantadas...

(...)"e eu refletia labaredas pelos olhos e dentes"
baita imagem!


te deixo um beijo.