sexta-feira, 21 de maio de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

VII

(Se eu fosse uma barata, andaria confortavelmente na minha casa...)
"Mas onde foi que os guardei???"... Infelicidade a minha ter perdido alguns dos meus escritos (ou teriam as baratas, em meio ao caos total, carregado-os?). Sento-me no azulejo frio, repenso: "Onde os guardaria, se eu fosse eu?". Não que haja qualquer coisa lá. Não que lá esteja contida a minha obra prima, ou que me julgue diferente de mim mesma ao não encontrar algo que guardei, ou abandonei em algum canto provável da casa.
Não sei, algo se perde, como pertences importantes deixados por engano entre sacolas plásticas na lixeira do condomínio (ato recorrente, diga-se de passagem). Como cartas de amor de infância, perdidas na vergonha de haverem sido. Como comprovantes de pagamento, jogados fora pela descrença em sua necessidade futura. Logo eu, que não sou de deitar fora as coisas: mas as perco por distração de tê-las. Até minhas ideias, perco-as por havê-las parido em palavras.
Fico em dúvida diante das opções de agora. Remoer outras coisas mais perdidas. Desviar meu pensamento em direção ao sorriso do porta-retrato. Acompanhar os pequeninos passos rápidos da barata recém saída do quarto...

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VIII

Sem que eu percebesse, meu corpo colava-se à parede, e as pálpebras do inseto piscavam-se em minha direção (seria uma miragem, ou algo comum aquele tipo de linguagem?); não sei mais no que pensava, se me deixava guiar por meio às frestas, se realmente desejava desobrir todo um mundo novo medido em milímetros. Eu também me movia a passos apressados, meu corpo todo pulsava e a sensação era a de que, se parasse, corria risco de morte.
O tamanho das coisas oprimia-me, inclusive a barata, agora maior do que eu... e sua linguagem de guia (eu já a entendia) docemente me fitava e me dizia: "Por que te oprimimos, se o teu mundo agora se alargou?". Pensei em me pôr novamente no chão, perdendo a chance de passear pelo teto, por todas as superfices de concreto, de metal, de vidro... E se eu pudesse voar? Como arriscar? Amedrontei-me só de pensar em descobrir minha nova anatomia. Meus mais novos instintos impeliam-me a voar até o açúcar, ainda estilhaçado entre vidros no chão da cozinha. Lembrei que só devia morder morangos. Mas onde havia de encontrá-los?
Deparei-me repentinamente com teu imenso rosto, olhos, nariz, sobrancelhas: instigou-me tua boca alargada.. Meus membros acariciaram-te por inteiro e, vagarosamente, senti que poderia parar: andei sobre os teus lábios suspensos. Se pudesse romper o vidro que ainda te separava de mim, entraria pelos teus olhos e, só lá dentro, voaria. Aconcheguei-me no teu ombro, adormeci. Foi então que encontrei o que buscava, no verso do retrato, no revés do teu rosto, algo que tínhamos anotado:

o preço
da espera
parece
ceder
ao silêncio,
à solidão:
boa ao corpo.
à alma,
não.

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1 pitacos:

marquito! disse...

sim, eu quero escrever assim quando eu crescer; eu tenho espiado as coisas por aqui, pra ver se o que tu escreve me inspira a escrever também, mas.. mas... não tem jeito: te leio, e me calo.
tá excelente!