sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

cadáver exquisito

senti que meus cigarros acabariam,
[na verdade eu contei, fiz cálculos, percebi que não durariam até que eu resolvesse sentir sono]
por isso saí, na noite fresca, em busca de mais um maço. será que à noite vendem morangos? com cinzas...
[mas eu não estou grávida ainda]
às vezes você pode entender o que eu digo, mas nunca vai sentir. mesmo acreditando que sente.
[será que eu sou uma mulher?]
mesmo que já tenha vivido. você não entenderia, por exemplo, como é irritante ter alguém ao meu lado me mandando parar de fumar, porque esta irritação dói no centro do meu estômago.

[um alguém que diria:
- ah! come só morango e não fuma]

dá licença, agora eu quero o deleite da noite, quero o perigo que ela desperta em mim, afastando-me de você, digo, de estar pensando em você e você
-ah! come só morango e não fuma.

entende? em casa, segura, não tenho maiores atenções, meus móveis são muito imóveis, não gravitam ao meu redor, não se movem para que eu caia, por esse motivo não lhes presto a mínima atenção.
na rua é diferente, os escuros, as sombras, os galhos que se mexem com o vento, os ratos que transitam em um trecho da minha rua,
[não sei quem mais assustados, eu ou eles?]
o frio que sinto,
[sinto-me impelida a pensar em coisas reais, você não é real]
tudo colabora comigo. e é por isso que eu amo os cigarros,
[será que você pode entender o quanto é irritante ter alguém ao meu lado me mandando parar de fumar?]
porque só eles fazem com que eu saia, fazem-me procurar as moedas, pôr a argola do molho de chaves entre meus dedos médio e indicador com atenção,
[a propósito da atenção, meu cinzeiro jogou-se de cima da mesa e eu nem dei por ele]
e sair troteando na rua, centaura eu!

[meu cinzeiro é o único objeto da casa que tem, sim, vontades:
- põe-me à janela, ordena ele]

se eu estivesse grávida, abortá-lo-ia de tanto fumar.
[ou pior: o bebê abortaria os cigarros de mim]
ainda: o desejo de comer guimbas me abortaria e, sendo abortada, eu seria ausência junto com você
[nós não-reais].

ainda estou caminhando e não quero olhar para a lua, porque é o chão o local privilegiado para as sombras: elas dançam, rastejam
[graças à lua].
rastejam os ratos, os cachorros, as árvores, as baratas.
Oh! o que são estas teclas de piano espalhadas pelo caminho e com manchas?
[que rastejam]
posso ouvir algumas delas e as reconheço: são as notas de dó e as notas de lá, oito de cada, a exclamar e interrogar intercaladas, perpassando crescentemente as oito alturas, assim!?!?!?!? dó lá dó lá dó lá
[dor onde?].

as baratas...
[quase piso em uma, enfim piso]
elas são criaturas fortes, que sobrevivem a tudo. e os ratos? como eles não morrem? com este odor tão forte de creolina,
[moro em um bairro cujas ruas, portarias de prédios, tudo lavado diariamente com creolina, o cheiro da decadência]
abafando o cheiro das fezes e da urina depositadas a cada fim de noite por bêbados, mendigos, fanfarrões.
[deus, pra que pensar nisso?]
é muito comum que ratos não morram, nem baratas:
[não morrem mesmo]
tudo é decadência aqui, até meu cinzeiro que se rompeu contra o chão, estava cheio e certamente quis chamar minha atenção fazendo isso
[por quanto tempo misturar-se-ão cacos, cinzas, pontas, cabelos e papeizinhos sobre o meu tapete da sala?].

se eu estivesse grávida, beberia creolina, talvez nascesse um rato com um focinho semelhante ao seu, longos bigodes que eu pentearia todos os dias
[bigodinho lindo da mamãe]
e engomaria com cera dos meus ouvidos humanos
[que ouvem assim !?!?!?!? dó lá dó lá dó lá]

sonhei que abortava um morango certa vez, estava morrendo de cólica. e você, também menstrua? não me lembro da sua TPM.
se as brigas são reais, a raiva, meu choro, minha insônia, a mágoa, por que você não é? você prometeu que ia me engravidar...
quem disse que morangos têm gosto de sangue provavelmente mordeu a língua enquanto os comia. a felicidade tem gosto de sangue e há muito tempo eu não gozo de dor porque você foi.
[e não volta]



como faço pra descrever tal cena? penso que em seu ventre já um pouco protuberante jaz um filho, o meu filho, agora com ela no asfalto. eu disse, repeti:
[come só morango e não fuma]
presta atenção: tudo já caía das suas mãos com queimaduras, de quem não lembra mais o manuseio do fogão, nem sabe mais acender o cigarro,
[só sabe segurá-lo nos gestos triunfantes que acompanham suas tragadas, suspiros de prazer na verdade]
quem se corta com a faca diariamente, sobre as queimaduras: tudo acidentes, falta de atenção.
e agora, pois, era mais um,
[fatal]
ninguém a socorreu e tenho que contemplar tal imagem: entre ratos e baratas que a saboreiam, cacos de vidro de um lindo cinzeiro que se partiu entre as suas pernas. entre os dedos indicador e médio, o molho de chaves, na outra mão, a carteira de cigarros branca respingada de vermelho, a cor da fraternidade. morangos, muitos.

- e eu planejara tudo isso? bela imagem, não? a estética, acima de tudo!!! jamais me mataria por sua causa, morro em forma de acidente!

- só pode ter sido acidente, egocêntrica não se mata. ela queria um filho meu, eu dei e...

- sabe o que eu queria de você?

- ...fui embora. deixei-a. não a quis mais.

- queria mesmo que você viesse até meu cadáver
[muito saboroso, ou não vê como se regozijam ao meu redor as criaturas da noite?]
e comesse os morangos, sei que eu, em pessoa, já não te apeteço:
Come só morango.

[conto escrito com a idéia de fazer um cadáver exquisito. não é exatamente isso, pois esta técnica pressupõe ainda outras coisas... além disso, exquisito, em espanhol, é um falso cognato, criando um jogo de sentido interessante, até porque os dois sentidos (em portugês e em espanhol) cabem.]

7 pitacos:

marquito disse...

ora, veja só que tristeza: me identifiquei com o cinzeiro que quer se jogar pela janela. vai entender...

é texto ótimo, com imagens fortes: morangos com cigarros, um bebê que faria abortar cigarros, um filho que jaz no ventre...
ah, os cigarros! eu sempre quis escrever sobre eles. invejei o texto e as imagens que ele propõe. hihihiihi

tive um pouco de dificuldade de compreender a última parte [aquela que começa com "como faço pra descrever tal cena?"]. acho que esse trecho deu uma quebrada na narrativa e destoou um pouco do que veio antes e das imagens anteriores, que foram mais interessantes. de qualquer modo, o trecho final é excelente: coma só os morangos, que minha carne já não te apetece. brilhante! por mim, o texto tá pronto pra publicação!!!

[observação: tudo o que eu disse são apenas as impressões de alguém que não sabe muito o que tá dizendo... posso ter dito besteira, viu?]

beijoca.

Nana disse...

que moças insanas.
gostei muito do texto. =P

Anônimo disse...

tem mesóclises! adoro!
muito bom o texto e interessantíssima a técnica.

besos!

ju

cintilante disse...

Oi Carol!
Me encantei com essa técnica de escrita, confesso que a dava por conhecida, achei muito bacana de ler e extremamente criativo, um processo de composição muito completo.
E ah, obrigada pelas visitas! Através do log da Nana eu já havia tropeçado aqui no teu e tbm gosto muito do jeito que escreves!
Vamos nos divulgar, então. Com certeza vale a pena essa tentaiva de expôr o material de outras pessoas.

E ah, essas fitinhas de fundo de tela estão o máximo!

Beijos

cintilante disse...

a dava por DESconhecida*

Unknown disse...

Posta mais.
Eu não consigo parar de ler.
Já li tudo. Quero mmaaiisssss.

Analisar eu não sei, pra mim existem 2 tipos de textos, os que eu leio gosto, ou não, e os que me viciam.

Viciante.

Lucas disse...

"ainda estou caminhando e não quero olhar para a lua, porque é o chão o local privilegiado para as sombras: elas dançam, rastejam
[graças à lua]."
Cara, Carolina, é no chão que se encontram as guimbas já fumadas, as estrelas esfumaçadas do passado! olhar para o chão é contemplar as ruínas de cada cigarro que já foi, as constelações de alcatrão e nicotina!
Obrigado pela visita e pelo incentivo! seja sempre bem vinda!
"Strawberry fields forever"
bjos