sábado, 21 de fevereiro de 2009

É ritmo de festa

000Carnaval. Na televisão, passava o desfile das escolas de samba locais; na sala, a família reunida, passando por mistos de tédio, intercalados a comentários maldosos sobre a fantasia pobre dos integrantes das alas, a chuva que caía fina e depois forte, colando as penas nos corpos das passistas. “Ai que perigo”, dizia a tia velha na poltrona com seu copo de cerveja em uma mão e o cigarro na outra, “imagina se a moça escorrega na avenida com toda essa chuva?”. Se ela escorregasse, sim, certamente quebraria um tornozelo. E quem se importaria?
000Havia também a pequena que, fantasiada de odalisca de cabelos presos e olhos pintados e repuxados, dançava em frente à tv, empolgadíssima com tudo aquilo. Todos só estavam ali para invejá-la em sua alegria, mesmo com todo aquele calor, com a falta de dinheiro que não os permitiu ir para qualquer buraco no litoral, com a cerveja dando indícios de que acabaria antes de o sono chegar, com os olhos de João Francisco, que exprimiam, em uma imensidão vermelho-inchado, revolta, autopiedade e a letargia dos dementes.
000Mas como querer que ele não chorasse? Adolescentes choram a toda hora, isso é fato. A verdade, embora seja ainda muito cedo para revelá-la, conto-lhes: bom seria o desenvolvimento de alguma técnica que nos permitisse chorar sem que a nossa anatomia nos denunciasse. Não apenas a pequenina irmã não ligava para os seus chororôs de ultimamente, mas toda a família. O problema não era seu soluço convulsivo escondido nos tarvesseiros de seu quarto, “chora que passa”, e sim aparecer em público com as pálbebras inchadas, com a cara amassada, com os olhos vermelhecidos. A família não queria pensar nisso: é carnaval.
000Estava aí então uma grande invenção a ser inventada, uma ideia periclitante, bastava percebê-la e criar alguma espécie de máquina, de dispositivo eletrônico, qualquer coisa que evitasse com que parecêssemos tão perdedores aos olhos olheios. E João Francisco era ótimo para invenções. Ele não materializava nada disso, fazia apenas um uso muito particular, inconscinete digamos assim, de suas descobertas: uma delas foi especialmente útil quando conheceu Soraya, sua namorada – que foi passar o carnaval na praia com a família e deixou-o em casa porque ele não tinha como ir até lá, muito menos se manter lá. Mas não nos adiantemos em pensar que a doce garota foi malvada, ela também nem tinha muita escolha; ela tanto poderia estar na farra, na décima segunda caipirinha, como em casa chorando a ausência do João. Pior do que qualquer uma das duas hipóteses, só o não-saber.
000Com toda a sua experiência dos 17 anos vividos até então, ele já desconfiava levemente de que há algo nas pessoas que nos faz gostar delas, detestá-las, ou simplesmente ser indiferentes. Ele pensava isso por imagens: para ele, havia um grande placar eletrônico em um grande show (afinal, conhecer uma guria é algo tão emocionante como estar no palco de um programa de auditório, mostrando um grande talento aos jurados, fazendo adivinhações a respeito de perguntas estapafúrdias, almejando o prêmio máximo...), cuja platéia, muito participativa e colorida com seus pompons, reagia o tempo todo com ahhhhhhhhhhhhs e ohhhhhhhhhhhhs. No placar, um sinal positivo e outro negativo, ambos sendo preenchidos, muitos gritos de ahhhhhhhhh à movimentação do positivo, outros mais fracos de ohhhhhhh ao negativo.
000Conheceu Soraya em circunstâncias que, de tão triviais, nem serão citadas. Olhou-a e não sabia ainda se queria dela o prêmio máximo (ou não? garotos sempre querem o máximo dos máximos, né?), nem era tão bonita, nem tão simpática: o placar permanecia imóvel, a platéia querendo ficar quieta e o apresentador manipulando toda a situação, dizendo: “vem você pra cá, vai você pra lá”. Lado a lado param, ela usa um decote e tem belos peitos (ahhhhhhhhhhhhh); dá uma caminhadinha e: belo rabão (ahhhhhhhhhhhhhhh); olham-se, ela mostra a ele um belíssimo sorriso (ahhhhhhhhh); ele sem beber qualquer coisa, não tem dinheiro para isso, ela pede uma caipira de vodka, paga e convida-o a desfrutá-la (ahhhhhhhhhhhh). Bom, com tanta sorte, com um placar tão favorável, já era hora de parar o jogo: “Rá rai, má vai pará assim, no duro?”, “Duríssimo!”
000Sua família ao redor da tv, sua irmãzinha ali vampirizada pelos olhos de inveja complacente de tanta alegria com o nada, e só o que ecoava em sua cabeça era um imenso Ohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh. Na sua imaginação, o tal apresentador sempra dava algum prêmio de consolação (“má, rá rai, quem quer dinheiro?”), vinte pilas que fossem... e ele queria dinheiro sim, muito dinheiro para se desenterrar do sofá. Sua cabeça adolescente, aliás, driblando o Ohhhhhhhhh ensurdecedor e a contagem das caipiras (também em forma de placar lasveguiano) de limão, de morango, de kiwi, 13, pensavam em uma forma de fugir pela manhã, de pegar uma carona na free way, roubar uma velhinha, comover a tia velha e conseguir algum (e seu silêncio conivente também). Nada disso aconteceria, óbvio. Voltou à contagem.
000Precisava ir dormir, queria acordar cedo para por em prática suas hipotéticas patetices, só não estava autorizado, no entanto, a sair da sala e deixar de contemplar tal festa. Ninguém sairia dali até que a pequena se cansasse, se entediasse, enfim, descobrisse que a vida é, na maior parte do tempo, uma quarta-feira de cinzas continuada.

1 pitacos:

boneca cega disse...

eh teu este txt? tem que ser, ele eh tao bom, mas parece coisa de cronista, a tematica fugiu um pouco do estilo carol que eu conheço, me surpreendeu e eu amei, parabéns!