quarta-feira, 14 de abril de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

III

Do meu mundo é o açúcar que derramei hoje pelo chão. Eu chorava. Chorava sim, mas não por ter de limpá-lo (sou relapsa com as coisas ao redor, só que me afligi, decidi que era melhor juntar na hora), não porque isso ia me fazer perder o ônibus, me atrasar... não porque chovia muito lá fora. Também não porque o morro branco que se formou no chão, dunas bem branquinhas, misturou-se à umidade, formando uma pasta feito massa de pão doce. Chorava e não sabia por quê. Não era caso de emoção (ainda que seja impossível olhar pro açúcar, adoçar meu café todo dia, e não reler na sua alvura os versos do Gullar), não era época de choro. E eu também não vi motivos para segurá-lo: fui em frente, me permiti. Lembrei até o provérbio famoso aquele, adaptando-o à minha situação: pra que chorar sobre o açúcar derramado? Não sabia... saberei algum dia?
Quando tive de sair, sequei as lágrimas e me maquiei. Rosto vermelho de frio, ressaca de existir nos olhos , alma nervosa de andar. Mais rápido, mais rápido... então passou meu ônibus, e nada restava que não fosse esperar passar o próximo, a passos curtos, acender um cigarro, passar na padaria e mandar embrulhar aquele sonho assado, doce... mas eu tava de dieta. Lembrei-me também do açúcar (meu deus, pra que me fizeste humana, se de mim nada de emoção emana sem que eu filtre tudo com o pensar?). Decidi  apagar o cigarro já aceso, não tragar o doce do sonho e mastigar, lascivamente, o filtro branco que pairava entre meus dentes. Havia qualquer coisa acesa, no entanto, qualquer brasa em chama em mim... no fundo, o que me queimava era a culpa. Pensava na minha distração (se não fosse não ter olhado pra fora da janela no instante exato, não teria deixado cair o açucareiro, não teria visto partir o vidro em cacos que me refletiam do chão: foi uma visão profunda de branco, desespero e solidão), pensava no que dizer do atraso, mesmo que ninguém fosse dar pelo caso (afinal, aquele vidro partido no chão era eu - transparente, aparente só quando quebra e se desfaz). Eu precisava - sem ainda ter tido tempo de encontrar - de uma desculpa pra tanta culpa de existir, de pensar...

1 pitacos:

Edna Hornes disse...

Querida!

Que texto bonito... e triste.

fiquei até doída...

:'(