quarta-feira, 21 de abril de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

IV

Pensando, mais uma vez e sempre, entro em contato com uma das minhas culpas, talvez a mais cretina, porque sei que não há razão, que existem as coisas da vida que simplesmente são...
Chego em casa em tempos em que o clima já se esfria, os ventos gelam meus cabelos, meu nariz; cai a tardinha que corta o horizonte não menos belo, mas embaça minhas vistas através dos vidros amarelos da condução lotada. Penso em chegar, tomar meu chá, ler qualquer coisa que não sejam contratos, especificações de materiais, unidades de medida... Ah, se isso tudo servisse, mediria não só meu próprio corpo (pra percebê-lo em sua real dimensão, fazendo um molde pra vê-lo de fora de mim... talvez tivesse assim uma vaga ideia do que sou, do que veem em cada ângulo, em cada fio de cabelo fora do grampo... acho que poderia julgar-me com maior precisão: "posso emitir pedido de compra" "não posso comprar material de tão má qualidade" "as especificações não condizem com o produto"), colocaria tudo o que penso e sinto numa caixinha de papelão, pesaria tudo e despacharia na rodoviária. Seria um problema escolher um destino, não sei de onde essas coisas vêm, não sei mais com que matêm relação... Pensando bem, sortearia uma letra e escolheria a cidade que assim se iniciasse, acima de três sílabas, mais ao norte. Quem disse que ter critério sério é relevante?
Chego em casa e não faço nada disso: prefiro vasculhar memórias (ou elas é que me preferem) , pensar se algo algum dia foi importante realmente, ou se foi só fabricação constante de uma mente preocupada em se entreter... difícil dizer. Meu tempo passou, já não sou mais aquelas muitas que já fui, já não sei o que querer ser, porque mais nada existe que me possa levar (como as músicas que contagiam multidões, que dançam, saltitam, se requebram em movimentos irracionais...). Já houve quem me levou: eu ainda era leve o bastante, tão leve que deixei com que o vento levasse, o tempo roesse o que houve e o que jamais haverá. Mas saiba: em algum momento distante sonhei, usei o verbo em tempos presentes, futuros e perfeitos. Prometi que voltaria. Não voltei... Sorvo um gole lento do meu chá, observo se um vaso quebrado, colado... Se não fosse eu a dona do vaso, perceberia nele alguma rachadura? Decidir colar um vaso, juntar cacos, procurar as peças tortas, consertá-las: tão mais fácil seria inventar novas promessas, mas ainda deve haver algo que me prenda a essa.

2 pitacos:

Maria Teresa disse...

É lindo de doer!

Karen Raquel disse...

Só estou esperando a publicação de um livro teu!!!
Lindooo!!! =)