segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Dóris Regina Nogueira - IN PROCESS

Ia passar o final de semana fora de casa. Bom, já era uma evolução e tanto, uma grande experiência, um teste. Botei no cd player um álbum de salsa, "Lo Mejor de la Salsa", segundo dizia o encarte. Como sempre fazia antes de sair, metodicamente, separei primeiro a roupa com que iria, depois todos os itens de que ia precisar.

(A diferença é que, dessa vez, a tarefa, mais rápida, exigia somente a metade de mim.)

Poucas, pouquíssimas coisas. Interessante, que aprendi, quem sabe, a sair mais desprendida, aprendi a selecionar com mais afinco o que realmente queria levar comigo. E tudo o que deixo, ainda que não mais que momentaneamente? Deixo-o, deixando-o, no entanto, cuidado.

(Quantas coisas de ti. Não te nego, Cássio.)

Salsa. Ao som alto, respirei, estiquei a cama, estendi a roupa que bailava salsaritmicamente na máquina, lavei a louça, varri o piso. Senti um poder interessante, um instante de tudo o que nunca fui. Diferente e especial: a saída e tudo que se leva com ela é o de menos - na chegada reside a mágica da vida. 

(Também chamaria de volta, não fosse a diferença de a volta ser ainda um pouco mais interessante. No não-inesperado moram os enganos.)

Na verdade, saía e voltava com o que tenho de mais importante.Sempre estive comigo mesma. Terminei o serviço que me impus sentindo-me como dona do meu próprio ninho, contrariando qualquer princípio feministicamente falando. Um antifeminismo me tomou, poderosa como um batuqueiro se sente.

(O Cássio me provou que todo batuqueiro é poderoso. Mais ainda os de batuques feitos na praia, de pele negra como os deuses africanos de reinos tão distantes que já cansamos de tentar saber sua verdadeira história. Ouvindo-a, dormia em seu peito cru, lugar para onde, nem sempre sabendo o valor disso, tantas vezes me acostumei a voltar.)

Preparado o ninho, estrategicamente pensado em relação ao bem que seria  para ele voltar (o único lugar que, mesmo sem saber, sempre tive de verdade),  fechei a porta, varrida pelo vento dos finados, voltei à praia.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

TATO

Deitado
sob teu peso
chora todo
o meu corpo
num pranto
escorrido
em suor
gozo e
sentimento.

Tua pele respira
expele
o que há por
dentro...
colada ao teu
corpo, falsa,
finjo que descanso,
atenta aos sinais
que revelem
aquilo que escondes.

Ergo o pescoço
buscando tua boca.
Toco os lábios
que me nasceram
na lembrança
antes
de existirem em mim,
lábios torneados
por tua barba dura
que machuca
esta boca
desejosa de ser só tua.

Entrego-me
de novo,
surge
em minhas mãos
teu membro
ereto
faminto, sangrento.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

AUDIÇÃO

Foi preciso
ouvir tua voz.
Descobri-a rouca
afoita, talvez
ansiando contar-me
qualquer coisa,
querendo
as atenções
já tuas.

Foi preciso bem pouco.

Silenciamos
as vozes
brotadas
de nossas gargantas
frente a frente
na rua
ainda na mesa de um bar.

Boca a boca,
ouvi tua respiração
teu suspiro agudo
mudo
e as batidas do teu
coração
quase a machucar-me
o corpo estendido
na cama,
que gemia,
inocente,
sofrendo
a pressão de dois
corpos surdos
ausentes
amantes.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

VISÃO

Não buscava nada
tão longe estavam
meus tristes olhos
já sem comoção
sem morada cada
parte
cada poro
percorrido
do meu corpo
sozinho, vazio
sem dono
um nó.

Te vi.
Chegou-me pelos olhos
toda a fome
vidrada de ti.
Foi um instante
vago
um suspiro esparso
num vácuo que não senti:

um vazio branco
uma lágrima
cortada
que, inconstante,
gotejava em mim.

Eternidades de ti
duraram em mim.

Desde então
te tive todo,
uma imagem
lembrança, talvez...
uma imagem
gravada nas retinas
tortas
que resistem em mim.


Habitaste o que
essencialmente
sou:


o olhar que
seguro
me leva por onde vou.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

DIÁRIO DE CÁSSIO SOUZA ANTUNES

1

Cheguei em casa. Tinha perdido a noite. Paciência, ao menos não tava bêbado. Tirei a roupa, depois dormi o dia inteiro. Acordei, desci até o boteco: dois pastéis de calabreza (sim, e sem quem me enchesse o saco por isso). Bastava reestabelecer os níveis de gordura no meu organismo, mais um latão de cerveja... Depois aquela tevezinha. E me assaltou de repente a lembrança desagradável da madrugada, que eu julgava superada. Filha da puta! Não tinha nada a ver ficar conversando com aquela maluca... em vez de estar longe, já em outro lugar comigo (e sem o maldito vestido desbotado dos botões carcomidos), despenteada e desabotoada, falava em incensos indianos, almofadas de seda! Em que mundo essa louca vive? Deu até vergonha, baixei minha cabeça, e a gordura pingou no pratinho de inox. Em que mundo eu vivo?

- Oi?
(Sim, um ser prostrou-se diante da minha mesa no instante exato e tosco em que procurei me concentrar na gordura do prato, ainda sem saber apreciar devidamente a solenidade de certos momentos, como ingerir quantidades absurdas de gordura, desenhar com o dedo no óleo, sem ter quem me incomodasse.)

- Era só o que me faltava...
- Meus pensamentos agora chamam almas...
- Cadê aquele teu vestido horroroso, jogou no dilúvio?
(Essas coisas todas pensei em uns dois segundos, enquanto mastigava o ar na boca.)

- Hey! (que cínico eu fui!)

- Não sabia que tu morava por aqui...

(- E eu não sabia que com esse decote aí a pessoa já muda...)
- Pois então, moro aqui em cima. E tu?

- Moro na rua de trás, tava passando e te vi aqui. Desculpa, é Cássio, né?

- Uhum. Desculpa, eu não me lembro...

- Dóris (sorrindo). O que servem aqui?


2


- Depende. O que tu quer comer?

(A Dóris, deu pra perceber, era bem atinada até. Ligeira, objetiva, mas também de uma capacidade incrível pra enrolar, dizer sem dizer as coisas...)

- Ah, desculpa, nem te convidei... senta. 
(E ela olhava em volta com uma cara... Bom, por mais que ela parecesse diferente da noite anterior, a começar pela aparência, bem mais apresentável, eu já não tava preocupado.)

- É que eu não como gordura... Será que servem alguma coisa mais natural? Mas deixa, eu não tô com fome, fico até tu terminar.

(Audaciosa também, sem nem saber se eu queria que ela ficasse. Eu também já não sabia mais se não queria, tava bonito de ver seu esmalte, em tão pouco tempo, já roído. E ela ainda tinha olheiras. Será que não dormiu? Não sei por quê, esse tal ar decadente me despertava alguma coisa.)

- No que tu tá pensando? 

- Se tu ao menos quer um gole da minha cerveja, se não vai comer...
(E ela já segurava meu copo com as duas mãos. Engoliu o líquido com um prazer vagaroso.... )

- Hahahahahahahahahahaha. (... e como uma cigana ela riu alto.)

(Eu só podia estar dormindo ainda. Comecei a me sentir mal, fisicamente mal com a presença daquela mulher. Que domínio se abateu sobre mim? Eu não queria nada. Juro que desci pra comer e voltar, não fiz a barba, não pus perfume, não troquei a bermuda surrada de andar em casa, nem sequer tinha tomado banho ainda depois da ressaca moral.)

- Que foi? Te assustei? Desculpa, sou rápida às vezes. (Com ternura na voz, de verdade. Que merda.)

- Acho que não tô me sentindo bem.

3


Acordei e fiquei apavorado quando vi a Dóris sentada numa cadeira, do lado da minha cama.

- Fiz um chá pra ti.

- Odeio chá. Hmm, desculpa, brigado.

- Posso tomar?

- Uhum.

(E minha curiosidade cedeu à beleza do momento. A xícara que segurava aquelas mãos! Ficaria em silêncio, mas ela queria falar.)

- Tu passou mal mais cedo ali no bar. Disse que não tava bem e caiu.

(Que bichona.)

- Daí eu te trouxe.

(Até pensei em perguntar como ela sabia onde eu morava, mas pra quê? Essa mulher já sabia de tudo. Se já não sabia, adivinhou.)

- Bah, valeu mesmo. Se tu quiser, pode ir... Desculpa aí, isso nunca que aconteceu antes. Que bichona!

- Imagina, tava ótimo ficar aqui, já deu pra ver um monte de coisas tuas.

(Gelei. Essa louca agora vai me matar? Será que ela.... ai, ela me envenenou, deve ter planejado tudo... já sabia onde eu morava!)

- Tô brincando, tá? Nem teria dado tempo, tu dormiu só meia hora.

- Capaz! Claro que tu tava brincando.... Acho que preciso de um banho. Que horas são, hein?

- São nove e meia. Então vai tomar teu banho, daí me despeço e vou. 

- Tá.

- Posso ligar o rádio?

- Claro.

Todo lo que vi está demás
Las luces siempre encienden en el alma
Y cuando me pierdo en la ciudad
Vos ya sabes comprender
Que es solo un rato no más
Tendría que llorar
O salir a matar


- Ahhh, Cássio! Tu gosta de Fito?

- Quêêê?! .......... Não tô te ouvindo....

(A Dóris entrou banheiro a dentro.)

- Tu gosta de Fito?

- Aham.

(Eu teria dito que gosto do Cauby naquela hora! Mas era verdade, eu adorava.)

- Vou deixar aberto aqui então pra tu ouvir. Adoro essa música!




Te vi te vi te vi
Yo no buscaba a nadie y te vi

Te vi fumabas unos chinos en madrid
Hay cosas que te ayudan a vivir
No hacias otra cosa que escribir
Yo simplemente te vi

Me fui
Me voy de ves en cuando
A algun lugar
Ya se no te hace gracia este país
Tenias un vestido y un amor
Yo simplemente te vi



4


Tomei o tal do banho feliz da vida. Na sequência, ia rolar um sexo, já tava mais do que certo.
(Eu ainda não tinha pegado a manha. Era ela que decidia.)
Quando saí do banho, sorridente, de toalha (e imaginando-a nua, me esperando na cama), ela estava de pé, com a bolsa, pronta a fazer o que tinha dito: se despedir e ir embora. Me saudou com um beijo no rosto e se foi.

E foi pior do que na noite anterior. Vagabunda.
Eu não disse nada. Fiquei uns cinco minutos parado, me lamentando por não ter sequer perguntado direito onde ela mora (se é que era verdade o papo de morar na rua de trás), por não ter pego um contato.

Sim, o palhaço ainda queria ver a filha da puta.


segunda-feira, 26 de julho de 2010

6 a.m.


acordei 
mais 
cedo
pra ficar
remoendo:

poderia meu 
pé esquerdo 
esbarrar num outro 
pé que não fosse 
um pé direito?

quarta-feira, 30 de junho de 2010

DIÁRIO DE CÁSSIO SOUZA ANTUNES

{fragmentos}

Conheci aquela doida, aquela que nem deve desconfiar de que, sim, eu escrevo um diário. Não teria por que me envergonhar disso, esconder dela algo que (tenho quase certeza) também faz. Mas escondo porque são coisas íntimas, porque ela me pediria pra ler, vasculharia as minhas coisas até encontrá-lo caso eu admitisse que escrevo... E, pensando bem, não sei o que mais me incomodaria nisso tudo: se ela se descobrisse nesse embrenhado de sensações, sentimentos (percebo que até agora só falei dela aqui) ou se é porque sei que ela adoraria ler as minhas intimidades só pelo prazer de se descobrir aqui, pulando certas partes menos interessantes. Seria uma oportunidade e tanto de ela saber o que eu sinto por ela - como se não bastasse ela me perguntar isso a todo momento...
{...}
Conheci aquela com quem moraria, aquela a quem desde o primeiro momento eu chamaria de doida - muito mais pelas esquisitices do que por qualquer outra coisa. Era aniversário de uma simples conhecida, em cujo apartamento fomos parar meio que por coincidência, já que ambos foram a convite de outros amigos da aniversariante. Ela não era bonita, seus cabelos não possuíam sequer brilho, trajava um vestido anacrônico, desbotado, do qual faltava um último botão (sem falar que o resto dos botões - era um vestido todo abotoado na frente - aparentavam estar meio descascados). Havia, porém, um leve resquício de vaidade naquela mulher: suas unhas brilhavam ao esmalte recém colocado, escarlate. Alguma coisa me doeu por dentro. Ela não me sorriu, ainda que tenhamos conversado. Apenas fumava seu cigarro à janela, bebia goles curtos de Martini quando lhe ofereciam (depois é que vim a descobrir que detesta, mas era o que tinha), e não sei se senti pena, de onde brotou um enorme desejo de deitá-la em meus braços e roçar nela vagarosamente meu membro já enrijecido dentro das calças, ou se foi o contrário. Ela também não conhecia ninguém ali, e ao contrário de mim, todos lhe davam atenção. Ela estava à vontade e tive a nítida impressão de que continuaria assim se soubesse o que se passava comigo enquanto falávamos. Fui sentindo raiva daquele vestido que devia estar encobrindo seus seios soltos e sua calcinha cor-de-vinho, quase combinando com o esmalte; senti raiva por ela poder estar com um jeans, qualquer roupa normal que não fizesse saltar aos olhos tanta estranheza.
{...}
Depois de ter acordado, ainda no apartamento onde tudo acontecia, olhei em volta pra ver se ainda seria possível encontrá-la... Quem sabe tentar me aproximar mais, chegar junto (eu não sabia o que estava querendo, tudo parecia muito mais um impulso que me empurrava ao desconhecido do que um desejo real por uma mulher que não tinha atributos suficientes que despertassem tanto tesão), deixar meu telefone com pretexto de fornecer a ela o endereço onde conseguiria as melhores marcas de chás importados a preços acessíveis (o detalhe é que eu não tinha a menor ideia da existência desse lugar, apenas ouvi de longe que ela era uma apreciadora de tão sem graça bebida)... Enquanto pensava nisso tudo, precisava mijar, lavar o rosto, recuperar as cores. Eis que, ao passar pela sala, aninhada estava ela no sofá, nos braços de outra menina. Lésbica filha da puta. Nem cheguei até o banheiro: saí enquanto ainda era noite escura, enquanto ainda dava tempo de esconder meu rosto, cobrir as nádegas e mijar à luz da lua.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Compilei o diário da Dóris. Até que.... gostei!
(Mas ele ainda deve continuar, até quando conseguirmos manter a sintonia. Não, ao contrário do que se poderia pensar, a Dóris não sou eu. E ainda bem.)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

X

quem resta sou eu: resisto ao passar dos anos, sobrevivendo a mim mesma como um fósforo frio... como uma sacola plástica que insiste em rolar pelas ruas durante as madrugadas escuras, perturbando os sonos sensíveis daqueles que temem as almas surgidas das cinzas... os cadáveres que surgem dos seus sonhos infames, sedentos por um último pulsar de vida que os anime, nem que seja por um lapso: eles não têm nada a perder. 

sim, faz frio aqui na minha casa - a casa aquela das paredes nuas -, mesmo fechadas as janelas de vitrais coloridos, de onde escolho, escondida, espiar meu mundo de agora. mas coloquei, de fora, frente ao sol, margaridas brancas de miolos fortes, moles, amarelo-velho: a cor do meu maior mistério, da covardia mais madura que nasceu em mim. não quero que sejam como eu, pétalas plásticas, miolos mofados, metades esturricadas dos adeuses tantas vezes dados.

o que faço agora? nada de mais, copio letras de músicas cretinas pra treinar caligrafia ou escrevo dóris dóris dóris dóris dóris dóris dezenove vezes no papel, que já acabou, já não me serve mais (pra que tanto acúmulo, meu deus? postais, retratos, cartas, cadernos, sentimentos, cartões, caixas de bom-bons... ao menos são recicláveis!), por isso escrevo agora na pele, porque me dei conta de que também posso ser matéria orgânica, pura, a cada poro aberto e sangrado pelas agulhas. andei regredindo, inclusive. andei escrevendo sobre a pintura das paredes: não queria mais vê-las nuas. pintei-as na espera, escolhi a cor mais púrpura que, coitada, sobrevive hoje desmaiada, quase crua.

terça-feira, 8 de junho de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

IX


Paguei o preço da espera lenta, dando-te meu silêncio, minha única razão. Assisti ao teatro de humanos, tomei cuidado com as sombras que a lua projetava pelos muros, pelo chão. E tudo, na verdade, te devolvia na imagem caleidoscópica dos espelhos onde refletiam cigarros já queimados até o filtro, acenando a solidão que colhi. 
Amadureci. Deixei que os ratos comessem do açúcar o amargo da minha razão, e o doce restante se renovava, do nada, a passos largos: era chegada a hora de me despedir da vida antiga, preparar tudo ao meu redor, jogar fora um passado roto, encaixotar discos, diários, livros e lembranças dos dias contigo vividos. Precisava sobretudo me preparar pra ti. Quanto isso levaria? Quantos anos eu tinha então?
Alcancei a plenitude antes até de tê-la vivido. Cartelas de cores de tinta pras paredes ainda nuas, sofá-cama, prendedores, box duplo, armários embutidos, adesivos coloridos, toalhas rendadas... O amor tem destas coisas: te enxergava em cada fio de eletricidade, em cada lâmpada apagada do castelo que desenhava pra nós.
Senti, no durante, tamanha plenitude que não pude perceber o que já estava distante - eu-não-pensava-em-nada.  Meus dedos roçavam os mesmos velhos objetos de antes, apenas distintamente dispostos... e cada toque servia pra devolver-me sensações sentidas: me fizeste lembrar que sou alma que é prendida num corpo. Corpo sensível à tua mera existência. Corpo que respira em sonho teu sono. Corpo cujo doce reservei-te. A cada caixa que abria, saíam retratos teus, molduras minhas feito corpo a te envolver.
Esperava por ti e fui te buscar. Faltava-nos ainda um último retoque: pendurar na parede o relógio, ajustar seus ponteiros, porque nele

o tempo, leve,
leva embora
relógios de cera
já sem hora.

esboroada espera
embora seja
agora,
senhora,
a hora
não demora:

a semana
já sumiu
resta apenas
nós
as nuvens
e a aurora.

...

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Naufragar é preciso.

de luzes
acesas
sou quem?

farol
perdido
em molhes
brutos,
pedras frias
demais
pr'aportar.

navios
desviam
i n t e r m i t e n t e s
feito a luz
fraca, fugidia
qu'insiste
nas ondas
naufragar.

sou água dura,
pés molhados, ataduras
de desejos tortos...
traçado reto
i n c o m p l e t o
onda incerta que
na praia
se fura,
se quebra
e se vai.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

VII

(Se eu fosse uma barata, andaria confortavelmente na minha casa...)
"Mas onde foi que os guardei???"... Infelicidade a minha ter perdido alguns dos meus escritos (ou teriam as baratas, em meio ao caos total, carregado-os?). Sento-me no azulejo frio, repenso: "Onde os guardaria, se eu fosse eu?". Não que haja qualquer coisa lá. Não que lá esteja contida a minha obra prima, ou que me julgue diferente de mim mesma ao não encontrar algo que guardei, ou abandonei em algum canto provável da casa.
Não sei, algo se perde, como pertences importantes deixados por engano entre sacolas plásticas na lixeira do condomínio (ato recorrente, diga-se de passagem). Como cartas de amor de infância, perdidas na vergonha de haverem sido. Como comprovantes de pagamento, jogados fora pela descrença em sua necessidade futura. Logo eu, que não sou de deitar fora as coisas: mas as perco por distração de tê-las. Até minhas ideias, perco-as por havê-las parido em palavras.
Fico em dúvida diante das opções de agora. Remoer outras coisas mais perdidas. Desviar meu pensamento em direção ao sorriso do porta-retrato. Acompanhar os pequeninos passos rápidos da barata recém saída do quarto...

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VIII

Sem que eu percebesse, meu corpo colava-se à parede, e as pálpebras do inseto piscavam-se em minha direção (seria uma miragem, ou algo comum aquele tipo de linguagem?); não sei mais no que pensava, se me deixava guiar por meio às frestas, se realmente desejava desobrir todo um mundo novo medido em milímetros. Eu também me movia a passos apressados, meu corpo todo pulsava e a sensação era a de que, se parasse, corria risco de morte.
O tamanho das coisas oprimia-me, inclusive a barata, agora maior do que eu... e sua linguagem de guia (eu já a entendia) docemente me fitava e me dizia: "Por que te oprimimos, se o teu mundo agora se alargou?". Pensei em me pôr novamente no chão, perdendo a chance de passear pelo teto, por todas as superfices de concreto, de metal, de vidro... E se eu pudesse voar? Como arriscar? Amedrontei-me só de pensar em descobrir minha nova anatomia. Meus mais novos instintos impeliam-me a voar até o açúcar, ainda estilhaçado entre vidros no chão da cozinha. Lembrei que só devia morder morangos. Mas onde havia de encontrá-los?
Deparei-me repentinamente com teu imenso rosto, olhos, nariz, sobrancelhas: instigou-me tua boca alargada.. Meus membros acariciaram-te por inteiro e, vagarosamente, senti que poderia parar: andei sobre os teus lábios suspensos. Se pudesse romper o vidro que ainda te separava de mim, entraria pelos teus olhos e, só lá dentro, voaria. Aconcheguei-me no teu ombro, adormeci. Foi então que encontrei o que buscava, no verso do retrato, no revés do teu rosto, algo que tínhamos anotado:

o preço
da espera
parece
ceder
ao silêncio,
à solidão:
boa ao corpo.
à alma,
não.

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domingo, 2 de maio de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

VI

... El tiempo pasó
fuimos ella y yo
dos en la ciudad.
Pasó, pasó
pasó nuestro cuarto de hora
pasó, pasó
pero aún sabíamos reír...

Tocava a canção de Fito e era domingo. Deixei-me embalar, dancei dentro de casa, enquanto o dia desperdiçava sua luz, de manhã. Um copo de chá, ofertando a meu estômago regurgitante e a tanta luz que se sobrepunha às venezianas, às cortinas, às portas trancadas, às paredes espessas... tomei meus longos goles, depressa, até verificar seu fim.
Sentei no chão, decidida, abriria aquele meu velho baú de vime, espalharia pelo chão tantos papéis, cartas, postais, embalagens que guardei. Ali, outrora fui jogando tudo, dízimos de lembranças de qualquer parte, de qualquer espécie. E achei que era a hora de separá-las, uma por uma. Iria separá-las em envelopes, catalogá-las. Não sei se disse a alguém, ou exatamente a quem falei, dessa minha mania de separação. É como se precisasse de tudo muito bem arrumado, e assim poderia compreender tudo, passado o primeiro impulso, aqueles momentos de intensidade que tornam as coisas nebulosas. Era enfim chegada a hora de deitar fora o que já não fazia mais sentido (e tudo que tava ali eram recortes paralelos de momentos, pequenos momentos em que fui feliz!).
Não concluí a tarefa... sou covarde, não tive como pensar sobre o que eu não entendia, classificar sem critérios e parâmetros. Não os encontro em parte alguma, em pessoa alguma. E tudo faz e não faz sentido, tudo ainda se distorce, se evapora ao acender do meu cigarro. Sinto como se estivesse a decifrar meus sonhos, como aquele em que estava queimando em praça pública. Eu sorria para alguém enquanto as chamas me invadiam os seios, queimavam os meus cabelos, e eu refletia labaredas pelos olhos e dentes, para que a pessoa, atrás de um chafariz, me enxergasse. Meus dentes não se desfizeram, meus olhos sobreviveram marcados sobre a rocha que por séculos ficou ali parada, servindo de encosto para sacolas, de banco a quem quisesse descansar, ou a quem esperava um amor que se atrasa, ou, ainda ,espera a solução de um problema, a dissolução de uma dúvida atroz. Sobrevivi como uma mancha perolada na pedra.
Sinto-me a decifrar minha vida como quem se esforça para lembrar de um sonho bom. Sinto-me amputada de razão, julgamento, sinto que perco algum detalhe importante, ou algo banal. Acho que tudo o que sou é memória e lembrança, e talvez esteja certo quem disse que o essecial é invisível aos olhos. Mas parece que sempre me escapa o essencial, mesmo com tantas relíquias que não me canso de mirar, carícias em minhas retinas (onde vou parar?!!!)...  E veja só o que encontrei, aquele bilhete daquela despedida:

Todo lo que vi está demás
Las luces siempre encienden en el alma
Y cuando me pierdo en la ciudad
Vos ya sabes comprender
Que es solo un rato no más
Tendría que llorar
O salir a matar
Te vi te vi te vi
Yo no buscaba a nadie y te vi
Te vi fumabas unos chinos en madrid
Hay cosas que te ayudan a vivir
No hacias otra cosa que escribir
Yo simplemente te vi
Me fui
Me voy de ves en cuando
A algun lugar
Ya se no te hace gracia este país
Tenias un vestido y un amor
Yo simplemente te vi
Só pude fechar tudo. Era Fito, uma feliz coincidência, talvez. Levantei-me e segui com todo o meu corpo os embalos de uma sinfonia que só eu ouço, dançando sobre todas as lembranças espalhadas pelo chão do apartamento, entre fumaças e raios que escapavam dos buracos que já nem me preocupava em tapar.

sábado, 1 de maio de 2010

Distensão


Olha só quem está por aqui. Imagens, cordas que procuram dedos afinados que reconstruam aquelas atmosferas que repetidamente dividimos. Não importa se tu não te lembrares d’alguma parte, eu escrevo sem nenhum problema, quero aumentar, procuro intensificar os mais intensos versos que reparti contigo. Confesso que essa tarefa me soa pretensiosa – levando em conta que ao aumentar sentimentos, esses tendam parecer um tanto quanto exagerados – enquanto eu e tu sabemos que isso é dispensável. Talvez alguma magia me assombre ou me encante ao lembrar dos teus olhos ou do meu peito palpitante. Ou alguma sombra descubra aquele medo – te falei, sou covarde – cinza. Apenas cinza. Nem branco nem preto, nem luz nem breu, nem sonho nem realidade. Me fala...que cor tu vês ao lembrar do nosso verão? Sinto tudo torto. Sinto-nos na distorção da fumaça do meu cigarro, encaracolada, cinzazulada. Prosa inacabada, cinzeiro vazio, troncos e galhos e folhas secas daquele mesmo jardim de antes, onde esquecemos quaisquer partes nossas.... Onde, fria, sento e componho agora.

(Mas tu dedilhas uma coisa qualquer que ecoa em cada canto do meu corpo.)

De meus dedos escorrem versos cinza – pouco numa melodia tão simples e bela e pura. Não me peças que relaxe: repercutem descompassademente corpos todos digitais, nós numa piscina de bolinhas multicoloridas, brincando sem culpas vazios escrúpulos... Não posso mais brincar sozinha. A vida me arranca tua companhia, e me faz querer-te mais. Cores não me satisfazem. Veja, pequena, minhas inteções não passam de utopias que se encostam no teu ombro. Tua respirada profunda nas minhas costas, sem cobertores, me provocam.

(Querer esconder-me em ti.)

 Em cada poro cinza, em cada verso preto ou branco, e em todos os pelos que iriçam em ti quando te voltas pro meu rosto. As cordas ficaram opacas - sem som - e não posso mais rememorar. Onde gravaste teu rosto roxoesverdeado pra mim? Me olhavas por espelhos maiores que meus olhos pudessem refletir. Desculpa, preciso da tua mão. A melodia se contenta, se incorpa, e finalmente estabelece-nos plenas. Tornamo-nos observadoras das atmosferas que sem cor nos rasgam e nos mantêm o calor nas mãos.

(em conjunto com sucedeuassim)

domingo, 25 de abril de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

V


Estive pensando em juntar os cacos... Houve uma vez que quebrei um vaso de cristal, a peça mais linda que eu tinha em casa, que fora presente: caro, raro, original. Quebrei-o por raiva, capricho... eu girava sobre minha própria mente, feito carrossel gigante colorido suntuoso, feito uma roda estúpida que gira e nunca promove adrenalina pra não causar grandes tremores. Mas enfeita. E menti (a quem me fizera tamanha delicadeza) que tudo não passou de mero acidente, tropeço frio no tapete... Fui em busca de um novo enfeite. Antes, guardei os cacos, sabia que algum dia poderia querer ressuscitá-lo (será que sabia?).
Quantas vezes tingi minha boca de vermelho! Fingia não ver o sangue dos cortes dos cacos em meus dedos, concentrando-me nos contornos escarlates desta minha boca que agora implora por teus beijos, refletidos no espelho, nos cristais cujo lugar já não sei mais qual. Quantas vezes estive eu à janela, mesmo fatigada, entregando-me feito rapariga anacrônica à tua espera... Enfeitei meus cabelos com dúzias e dúzias de flores (agora exalando os perfumes podres da morte), variei o penteado, vesti meus melhores trajes e sorri às sombras que de longe avistava! Meu carrossel suntuoso rodou, rodava... entre mil súplicas, trocava de cavalo, girava: não queria mais ser eu, escolhi ser várias. E fracassei no intento, porque sigo e espero a chegada do nosso tempo. Às vezes esperar é o que resta! (dizem que a pressa é inimiga da perfeição... Será? Qual o limite da resignação?) Muitos questionamentos nunca respondidos: e de novo só o tempo diz, devolve as respostas - beijos ou bofetadas - não importa! Acho que algo aprendi na estrada:  beijei o  vento (que nunca pediu nada em troca), senti o sol, que insistia em me acariciar a pele! Cada curva  repentina um arrepio, cada rosa negra que lambi neste caminho trilhado da minha porta à janela um frenesi que me arroxeou os lábios... Os espinhos, acho que os triturei nas lâminas dos meus dentes e os cuspi, antes que me furassem as veias. A chegada, mera consequência.
Até ontem, pensava "Meu tempo passou"... Tinha decidido pôr fora os cacos de um mundo em degradação. Pôr fogo nessa vida art nouveau... mas as palavras correm pela seiva do tronco e se misturam com todas as outras que estiveram ali desde quando broto. As palavras, as tuas e as minhas! Volto à origem, abro a gaveta velha: tiro dali a flor negra com que me enfeito os cabelos, pinto os lábios e as unhas, coro ao sabor do vinho! Abro todas as janelas e te sinto chegar (prometo brincar bastante contigo). Entra, a casa é toda tua... gira, gira comigo no mais belo carrossel de cavalos multicoloridos, ao som de um piano antigo. Valseemos, amor, eu te suplico!

___

(em itálico, várias passagens que copiei de textos: j. vizo, karen e camila)

(tudo o que tenho)


palavras...
sopros suaves,
minhas carícias em ti
perdidas num espaço vago
e lento e branco dos tempos.

palavras...
procuro-as doces, límpidas
mais puras: por elas preciso
sentir-te, nua.

tua boca, teu sorriso
em algum lugar se foi;
já nada sei, não mais vi
aquele brilho nos teus olhos...
o peso das tuas grossas lágrimas,
o último gosto vivo de ti (que ficou)!

vejo agora o buraco de uma folha de papel
(tudo o que tenho)
e logro preenchê-la plena de espaços
pingados de tinta,
densidade medida em pulsações sanguíneas
em que tu, no gozo
d'um fingimento insano, cega e digitalmente
lerás uma imensa
partitura que compus (e envio na carícia dos ventos):

lê, ela é só tua!...

quarta-feira, 21 de abril de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

IV

Pensando, mais uma vez e sempre, entro em contato com uma das minhas culpas, talvez a mais cretina, porque sei que não há razão, que existem as coisas da vida que simplesmente são...
Chego em casa em tempos em que o clima já se esfria, os ventos gelam meus cabelos, meu nariz; cai a tardinha que corta o horizonte não menos belo, mas embaça minhas vistas através dos vidros amarelos da condução lotada. Penso em chegar, tomar meu chá, ler qualquer coisa que não sejam contratos, especificações de materiais, unidades de medida... Ah, se isso tudo servisse, mediria não só meu próprio corpo (pra percebê-lo em sua real dimensão, fazendo um molde pra vê-lo de fora de mim... talvez tivesse assim uma vaga ideia do que sou, do que veem em cada ângulo, em cada fio de cabelo fora do grampo... acho que poderia julgar-me com maior precisão: "posso emitir pedido de compra" "não posso comprar material de tão má qualidade" "as especificações não condizem com o produto"), colocaria tudo o que penso e sinto numa caixinha de papelão, pesaria tudo e despacharia na rodoviária. Seria um problema escolher um destino, não sei de onde essas coisas vêm, não sei mais com que matêm relação... Pensando bem, sortearia uma letra e escolheria a cidade que assim se iniciasse, acima de três sílabas, mais ao norte. Quem disse que ter critério sério é relevante?
Chego em casa e não faço nada disso: prefiro vasculhar memórias (ou elas é que me preferem) , pensar se algo algum dia foi importante realmente, ou se foi só fabricação constante de uma mente preocupada em se entreter... difícil dizer. Meu tempo passou, já não sou mais aquelas muitas que já fui, já não sei o que querer ser, porque mais nada existe que me possa levar (como as músicas que contagiam multidões, que dançam, saltitam, se requebram em movimentos irracionais...). Já houve quem me levou: eu ainda era leve o bastante, tão leve que deixei com que o vento levasse, o tempo roesse o que houve e o que jamais haverá. Mas saiba: em algum momento distante sonhei, usei o verbo em tempos presentes, futuros e perfeitos. Prometi que voltaria. Não voltei... Sorvo um gole lento do meu chá, observo se um vaso quebrado, colado... Se não fosse eu a dona do vaso, perceberia nele alguma rachadura? Decidir colar um vaso, juntar cacos, procurar as peças tortas, consertá-las: tão mais fácil seria inventar novas promessas, mas ainda deve haver algo que me prenda a essa.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA

III

Do meu mundo é o açúcar que derramei hoje pelo chão. Eu chorava. Chorava sim, mas não por ter de limpá-lo (sou relapsa com as coisas ao redor, só que me afligi, decidi que era melhor juntar na hora), não porque isso ia me fazer perder o ônibus, me atrasar... não porque chovia muito lá fora. Também não porque o morro branco que se formou no chão, dunas bem branquinhas, misturou-se à umidade, formando uma pasta feito massa de pão doce. Chorava e não sabia por quê. Não era caso de emoção (ainda que seja impossível olhar pro açúcar, adoçar meu café todo dia, e não reler na sua alvura os versos do Gullar), não era época de choro. E eu também não vi motivos para segurá-lo: fui em frente, me permiti. Lembrei até o provérbio famoso aquele, adaptando-o à minha situação: pra que chorar sobre o açúcar derramado? Não sabia... saberei algum dia?
Quando tive de sair, sequei as lágrimas e me maquiei. Rosto vermelho de frio, ressaca de existir nos olhos , alma nervosa de andar. Mais rápido, mais rápido... então passou meu ônibus, e nada restava que não fosse esperar passar o próximo, a passos curtos, acender um cigarro, passar na padaria e mandar embrulhar aquele sonho assado, doce... mas eu tava de dieta. Lembrei-me também do açúcar (meu deus, pra que me fizeste humana, se de mim nada de emoção emana sem que eu filtre tudo com o pensar?). Decidi  apagar o cigarro já aceso, não tragar o doce do sonho e mastigar, lascivamente, o filtro branco que pairava entre meus dentes. Havia qualquer coisa acesa, no entanto, qualquer brasa em chama em mim... no fundo, o que me queimava era a culpa. Pensava na minha distração (se não fosse não ter olhado pra fora da janela no instante exato, não teria deixado cair o açucareiro, não teria visto partir o vidro em cacos que me refletiam do chão: foi uma visão profunda de branco, desespero e solidão), pensava no que dizer do atraso, mesmo que ninguém fosse dar pelo caso (afinal, aquele vidro partido no chão era eu - transparente, aparente só quando quebra e se desfaz). Eu precisava - sem ainda ter tido tempo de encontrar - de uma desculpa pra tanta culpa de existir, de pensar...

sábado, 10 de abril de 2010

DIÁRIO DE DÓRIS REGINA NOGUEIRA


I

Hoje acordei antes do habitual... Os grilos, os pássaros, todos os animais noturnos - até os gatunos humanos, transeuntes, carnavalescos pelos becos arredores - o mundo era pólvora prestes a estourar. E era noite ainda, ela insistia em deitar seu negrume no dia que nada prometia; e eu fiquei em sua companhia fria. Enrolei-me na manta de pelúcia e fui aquecer meu café preto, perto de tudo que tão bem já conhecia. - Seria outro dia? (Dei a primeira mordida na bolacha de gergelim, dissolvi-a, já na boca, às sorvadas de café pelando: queimei a língua) - Acho que não deveria pensar nessas coisas... - Despertei mais cedo, talvez tenha tempo de dar um jeito nos cabelos-aparar os pentelhos-cortar as unhas dos pés-fazer a lista do mercado-listar um por um meus pecados-escovar o banheiro-vestir minha melhor roupa-molhar as plantinhas, tirá-las da rua-me jogar da sacada úmida-voltar a dormir-cair no mundo sem fundo, crua.

II

Cheguei tarde. Tomei banho... vi um mundo abandonado em volta de mim. 
Tenho vinte e oito anos e uma cabeça toda branca, branca de verdade mesmo, de cabelos que vão nascendo e crescendo selvagens sem que eu queira. Já não moro numa casa com varanda, pátio, não moro porque não sirvo pra dar jeito nessas coisas que simplesmente vão acontecendo, vão deteriorando, sujando, desbotando: tudo vai ficando muito muito feio. Tenho vinte e oito anos e o limo vai subindo pelos azulejos do meu banheiro, o pó toma conta das estantes, e eu? Eu não tenho ânimo, durmo. E durmo pra acordar e depois domir de novo. Por isso, tomo banho e deito. Não. Tomo banho, separo a roupa do dia seguinte, passo a roupa do dia seguinte, passo o café do dia seguinte, listo todas as coisas do dia seguinte. E deito, porque nada disso, na verdade, é do meu mundo.

sábado, 3 de abril de 2010

é abril, meu bem, é chegado o abril... onde andas? ao menos percebes os ventos já vindos? invasores, adentram janelas, derrubam estatuetas de gesso, desfolham livros, levam coisas, mas trazem na volta os idos de qualquer outrora. e não me importo que me levem as coisas, ou que tragam o que quiserem: tudo passa e perpassa, o vento vem e leva o que quer, já nem seguro sequer o que seria meu, sequer o que com ele vem: economizo forças sabe-se lá pro quê! o vento... ele tá aqui agora, passa por mim, acaricia-me o pescoço, mexe em meus cabelos... ele tá aqui e comprova que "o essencial é invisível aos olhos", carícia gatuna e gratuiuta! tudo o que venho sentindo é como ele. não! ele ao menos se move, deixa marcas. meu sentimento, não. ai, já não sei se sinto ou adoeço (preciso expelir o corpo estranho que se move aqui por dentro, como um feto que pesa e precisa sair de num abdômen: ganha vida e destinos próprios... já não quero controlá-lo!), porque penso, ao invés de soprar teus cabelos e pescoço e lábios. e será que conseguiria sentir, apenas? preciso dos ventos pra me inspirar, preciso me encorajar e ser como eles, livres... e por serem livres carregam, derrubam, destroem tudo aquilo que precisa ser carregado, derubado, destruído. preciso saber se querers que te carregue (economizo forças), enquanto me derrubo e destruo tudo em volta. não quero mais nada, desde que próxima, muito próxima já estive de ti e do teu abraço. não agi, sou matéria enrigecida, e matéria pesada, por isso ventos só me cercam, me lambem as ideias, não me levam até ti: me cortam, me contorço de horror ou gozo, ainda não sei, não decidi. em tempo hábil. e ainda não é tempo, creio, de deixar jorrar qualquer coisa disso tudo. só quando eu puder, meu bem, sorrir.

quarta-feira, 31 de março de 2010

a cada despertar

engreno na escrita
de uma coisa oculta...
uma parte qualquer
de mim mesma
deformada
em linha
reta:
nó.

(queria o claro da escrita
mesmo nada revelando,
preenchendo espaços
tecendo nos versos
dispersos, vazios
nós guturais
lágrima
suor e
sal)


desperto a mesma, dispersa
no vagar dos sonos idos
e sós em leito estreito.
acordo em acorde
pulsante, maior
pálpebras
ardentes
lábios
e sonhos e vidas dormentes
(mas meu corpo, cansado,
lateja - são altas horas!
que barulho é este?)
na madrugada,
a lua a pino.



aspirinas! paracetamóis!
tragam-mos: amenizam...
amortecem  a  dor moral.
meu café,  esquentem-no!
lavarei o rosto  e,  se der,
farei  as preces,  pedirei
pelos  sonhos  partidos
perdidos  no  despertar.

segunda-feira, 29 de março de 2010

 para Camila

águas tranquilas,
de profundidade incerta, desconhecida....
não sei se paro e contemplo, apenas.
não sei se, devagar, mergulho e submerjo.

aos poucos, aos pulos
molho os dedos, as palmas das mãos
e saio
pro vento
(e seu sopro sossegado e quente)
vir me secar.

(sempre saio e sento
e vejo, vejo, vejo...
volteio a margem:
contemplo-me
em segredo
mergulhar) 

sábado, 6 de março de 2010

"A vida só é possível reinventada"

 
Reivento-me na linguagem
Num poema
Mesmo que
Pra isso
Não saia da escrita
Do que sou
E sinto de mim mesma.

Não sei quem seja
Eu, outrem
A vida que levei
Ou só tracei
Ontem.

A vida...
Esta que ora quero,
Por que me esmero,
Ora jogo fora
Relego ao acaso
Das coisas que não sei,
Não controlo.

Comprometo-me,
Mas logo esqueço, desuso
O discuro que exergo
E produzo.

Se lê o confuso
Do que ouço,
Enxerga em palavras
O que sinto,
O que transbordo...

Não! Não busque compreensão.
Reinvento-me porque nada muda,
Porque sendo não sou.

Troco de olhos,
Pois preciso ser outra... 
Vejo as coisas que conheço
E ao vê-las
Sinto-as de outra forma:
Reinvento, pois, a vida!

Enxergue o mundo como queira
novo
de outra maneira.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

irritação


eu deveria sentir-me grata por teres lembrado de mim, até mesmo porque isso é completamente verossímil, é o que alguém o tempo todo só e suada, dentro de um apartamento quente, deveria sentir: gratidão.
acordei só e suada, a despeito dos dois ventiladores em cima de mim, no momento da tua mensagem. não, não me causaste mal algum, porque, além de ser cedo pros meus horários habituais que tu bem conheces, voltei a dormir imediatamente. e dormi pensando bem no que li. tudo - inclusive nossa comunicação textual - pode ter no mínimo duas interpretações. aprendi contigo a ficar com a pior delas. mas, ao contrário de ti, não quero explicações, não faço questão de que me convenças do contrário: tudo o que houve - e tudo que poderia haver - está morto, em algum limbo distante, indiferente, como qualquer coisa que já foi, que já fui.
pergunto-me só se, em algum outro momento, me mostraria tão efusiva, ou tanto quanto gostarias... no fundo, passa-se o tempo, as tuas expectativas em relação a mim são sempre quase as mesmas: eu preciso reagir de uma determinada forma. é, talvez eu devesse ter achado maravilhoso ser lembrada... devia, em vez de achar que tu não tens atitude alguma (e por que agora, mesmo quando se trata de uma coisa simplíssima, terias?), ficar feliz por tu estares curtindo um pouco das coisas que tanto me fazem bem. feliz por estares te abrindo a um universo que eu tanto queria te mostrar, enquanto tu tinhas as tuas preferências.
a propósito, acabei de ver um filme, no qual o "tempo" tem uma relevância temática. as coisas têm seu tempo pra acontecerem, as pessoas também têm.
só não quero estragar aquilo tudo que ficou lá no limbo.
não quero deixar que toda a minha irritação se sobreponha às coisas incríveis que sinto por ti.
não quero irritações provenientes de expectativas de quem quer que seja. não me importo mais que te  frustres comigo, afinal sempre fui mais ou menos, mais menos.
de novo: eu devia me sentir feliz. desculpa.
quero que tu sigas em frente, não me quero no teu horizonte, nem na tua imaginação, por mais que lá, eu sei, eu seja muito mais bela e mais perfeita do que jamais poderei ser.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

boto as pernas pra rua
sento na janela aberta
me ponho
fora

salto
feito gato
noturno, num pulo
sem olhar pra trás 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

inacabado

(para Luan)

deitei no teu colo
caí de maduro
tateei o escuro
do abuso d'um desejo
calado, seguro

murmúrio mudo
meu suspiro 
silabado... 
era só teu nome
curto, alveolado

dedo a dedo
imprimi
meu medo
meu muro,
o rumo
calculado
do acaso
onde me pus

no teu cabelo
escuro
que compus
feito ondas ritmadas
um acordeon, um sax

no abandono
perdido
do teu braço
roça assim
de leve
pulsado

meu adeus
deixa,
digital,
gravado:

um mundo
imaginado
não vivido
inacabado

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

depositei qualquer coisa
de meu
na estrada
incalculada,
desejo de marchar
marchar e perder
qualquer discurso

perder de vista,
pôr em desuso
o compromisso
que assumi com
um mundo
de não-eus.

aqui não sou nada
[e quero ser nada]
e o aqui é o quando,
é o onde
onde sempre me quero:

cada brecha é meu lugar
cada espaço um desvio novo
um desvão de mim mesma
entre pés, pernas, panturrilhas
[genitálias]
que se tocam nuas,
amantes dos espaços vazios
efêmeros, belos!

quero asas lisas, axilas
nos meus pés...
aqui no meu aqui
não há correspondência
coerência
família, pátria, amores
problemas e dilemas.

sou o improvável
do agora
diante dos meus olhos.
sou e não sou em cada poro
quando quero
e quero gravitar
nos motores mais
e mais bestiais
do jamais.

o jazz soa
na boate em Curitiba
[parto, não parto?],
balbucio o baixo
grave, leve...
escrevo porque sou o agora,
escrevo e não perco
meus olhos em pontos
distantes, idos
perdidos no passado.

e já não sou mais eu:
comanda a toada sutil
dos meus gestos que
traçam esta escrita imóvel,
meu pulsar insano
vindo do piano
da voz...

prefiro deixar
a emoção do palco
comandar minha pulsação:

ser nada, o som sentido
nu
nas espaldas pautadas,
narinas dilatadas,
sussurros suados 
ao ouvido...
escorre comoção
por todo o meu corpo
acre, cru.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

com os pés no chão do mundo

é, viajar sozinha traz uma sensação de liberdade. tanta que é desesperadora, por vezes.

andar por uma praça, uma alameda. visitar um museu... a cada novo lugar, a imaginação voa, trazendo alguém pro meu lado.

e a vontade de comentar as coisas com alguém?

o pior é querer dar um abraço e não ter ninguém.

{desabafos à parte, tem sido ótimo andar por aí sem rumos muito definidos, conhecendo ruas, praças, alamedas, museus, bares, pessoas diferentes a cada dia}

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Bem-vinda

Minha casa tem caneta
pro Brasil inteiro
brincar de pintar
suas dores
em cores
de volúpia teatral,
prazer carnal
de todas as danças
de corpos torpes,
dormentes:
de lá ninguém sente
que foge...
carnaval latente
d'um brilho transparente,
lacrimal.

Minha casa tem um quarto
pendido d'um quintal de asfalto:
há folhagens fendidas
canteiros de flores carnívoras
de todos os aromas
podres, fedidas,
sangue escorrido de pétalas
feridas que secam abertas...
onde escarro,
despejo o balde
preservo regados
resquícios de amores
roubados.

Minha casa tem janelas
amarelo-velho,
mundanas venezianas
do medo
que me assalta
quando acordo
de mim mesma:
volto a ver
espaços vazios,
desejos expostos
d e p o s t o s
do castelo
de cartas marcadas
onde me escondi.

Minha casa
hoje sou só eu:
faca enterrada na terra,
tropical, cataléptica, nua.
E n t r a
- A casa agora é toda tua!

sábado, 9 de janeiro de 2010

Eu poderia...

tirar as trancas pendidas
pro lado de dentro
dos meus olhos vivos

encontrar nos vultos
nas palavras opacas
a saída esperada

beijar teus lábios
nos espaços vagos
do teu sarcasmo

virar esta folha
deixá-la assim
silenciosa, branca

e vagar pro escuro:
é lá que te procuro.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha.
(J. C.)
 Jhoni Olinger

vou tirando
um a um
esparadrapos desta memória
[pairada de um passado
de planos desfeitos]
sobre a grama absorvente
dos meus sussurros surdos,
confundíveis
co'a constante e densa sede
d'um solo desértico
que morre sob o sol do estio duro.

fluidos como água
que foge de poros
que não secam nunca,
pensamentos insistentes
g r i t a m
loucos, libertos
das finas faixas que os acortinavam:
são as melancolias mais brutas que brotam
m u d a s
do que posso sentir
e ser agora,
desculpa.

é que
de repente
num daqueles
tantos
momentos ausentes
vislumbrei
teu sorriso
[t e u s s o r r i s o]
visto e não visto jamais
era eu?
eras tu?
ou apenas meus punhos tortos,
obstinados num traçar insano
que te extrapolava de tão largo...

eu que reconheço
nas sombras
cada fio do teu cabelo torto,
cada ângulo do teu corpo,
as curvas do teu rosto
[cada vez mais distantes]:

só eu vi teu sorriso infantil
[disfarce de sarcasmo oblíquo?]
uma boca que era toda tu
em outras bocas rotas
[riscos rasurados que não rabisquei]
de salivas escorridas, 
poros incessantes e nojentos,
mas igualmente longes de mim,
do meu desejo obtuso,
dos meus olhos lavados,
levados pela sede violenta
do sangue que brota
destas veias secas,
apetecíveis,
veneradas pelos bichos
da lama imunda.

vão-se,
nos olhos que agora perco,
dentes, boca, sorriso
tudo que desenho enfim
[e que não tomo]
a cada despedida
das noites que se desfazem frias...
a cada nova manhã
d'um novo dia viva.